Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.











segunda-feira, junho 19, 2006

Ainda sobre os mais velhos

Em muitas sociedades indígenas, e mesmo em sociedades modernas mas pouco desenvolvidas em termos industriais, o papel dos velhos é da maior importância. Ninguém sabe mais do que eles. Pelo que tenho lido, mas também pelo que tenho assistido, a sobrevivência de muitos povos depende dos ensinamentos que os velhos transmitem. Talvez seja por isso que, em muitas dessas sociedades, a idade não tem importância. Tomei consciência disso mais do que uma vez. Por exemplo, quando estive com Dorinda Cunha, no sul do Sudão, a missionária serviu de intérprete nas entrevistas que fiz com a população de Marial Lou, a aldeia dinka onde Dorinda vivia e, numa dessas entrevistas, a dada altura perguntei à senhora com quem falávamos que idade ela tinha. Dorinda hesitou e não fez a pergunta. Virou-se para mim e disse: “Eles não sabem. Isso não tem importância nenhuma”.No sul do Sudão, importante era saber com alguns dias de antecedência quando ia chover, o tempo suficiente para preparar o chão e deitar-lhe as sementes, importante era, também, perceber a tempo quando algum animal estava doente de modo a evitar a contaminação da manada, importante era ter muitos filhos e saudáveis e saber cuidar deles e ensinar-lhes a conversar com os deuses, as marcações dos rituais, o manejar da AK-47. Tudo coisas que os velhos sabem melhor do que ninguém.
Só nas sociedades nómadas e nas industrializadas, os velhos se tornam empecilhos. Nos nómadas, porque não conseguem acompanhar o andamento do grupo. Nas industrializadas, porque convencionou-se que o tempo é dinheiro e, assim, como a maioria de nós não tem dinheiro, acabamos por não ter tempo para os nossos velhos. E porque pensamos que não temos nada para aprender com eles.

4 comentários:

Barão da Tróia II disse...

Triste é pensar que nós eramos uma cultura que respeitavamos os idosos, ainda me lembro do meu bisavô, um velho combatente de La Lys, e das suas histórias e lembro que quando morreu todos mesmo os mais pequenos como eu foram ao seu quarto. Hoje escondemos os nossos velhos, atiramo-los para a facilidade obliviante do lar impessoal, negamo-los, não sabendo que nos estamos a negar também.
Excelente artigo. Parabéns.

escrevi disse...

Tão bonito e tão verdadeiro.
Também por estas coisas que aqui referes eu me interrogo sobre quem é civilizado. O que é a civilização?
Tirando o manuseamento da AK-47 (necessidade introduzida pelos "civilizados") é realmente uma forma de viver a vida que nos ultrapassa.
Tens uma sensibilidade para captar o pulsar da vida quando fazes as reportagens que me obriga a repetir, cada vez com mais ênfase:
Escreve, quero ler sem ser constantemente interrompida por "Postado por CN".
E aprender, porque não tenhas duvidas de que se aprende sempre algo com aquilo que escreves.

Anónimo disse...

O teu texto, comoveu-me. Não só pelos meus velhos, como pelo meu futuro.
Sábios aqueles que não sabem, nem se importam, com a sua idade.

cj disse...

na concepção do tempo nas sociedades ocidentais podemos vislumbrar todas as diferenças de estilos de vida.
mas afinal o que é o tempo?
volta, einstein.

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Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média

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