Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.











terça-feira, junho 13, 2006

A primeira vítima

O que acho eu deste vídeo? A questão foi-me posta por Sofocleto, do Um Homem das Cidades… O que este vídeo demonstra é que na guerra a primeira vítima é a verdade, tal como já alguém disse. A única novidade, para mim, é o termo Pallywood para designar esta alegada palhaçada propagandística dos palestinianos. Tal como está, do modo como está editado, com a narração naquele tom convincente, o vídeo parece revelar diabólicas encenações manipuladoras da verdade. Talvez seja assim, talvez não. Nem sempre será, estou certo.

Um dia, em Mogadíscio, na Somália, entre outras fantochadas, deparei com uma encenação destas, mas toda ela (aparentemente) inventada pelo jornalista. A coisa passou-se assim… Havia dois locais possíveis para editar reportagens, em Mogadíscio. Ou na UER ou na Reuters. Eu (pela SIC) editava na Reuters, porque era mais barato e porque a SIC, sendo uma estação privada, não é membro da UER (uma associação de televisões públicas europeias). Mas, porque era mais barato, também a RTP montava na Reuters as reportagens dos seus enviados-especiais. Depois de algumas semanas a frequentar o Kilometer 7, assim chamávamos ao hotel onde estava a Reuters, tratava o editor irlandês como se o conhecesse há décadas. Um dia, antes de começarmos o trabalho, tivemos este diálogo:

Ele - A tua concorrência já cá esteve, hoje.

Eu – Ah, sim? E então, uma boa história?

Ele – Sim. Melhor que a tua, de certeza.

Eu – Porquê?

Ele – Queres ver?

E mostrou-me a peça já editada e que seria enviada por satélite para Lisboa dali a pouco. Era uma reportagem cheia de acção. A equipa de reportagem tinha sido apanhada num fogo cruzado, o carro estava danificado, uma bala tinha furado o radiador, o motorista tinha perdido o controlo e embatido num muro. A reportagem era feita à volta daquele cenário, com os repórteres de joelhos, abrigados do tiroteio pela carcaça do veículo. Muitos tiros, ta-ta-ta-tra-ra-ra-ra-ta-ta!!! Gritos. Fiquei derrotado. Naquele dia eram 10 a zero.

Depois, o irlandês contou-me aquela história de outra maneira. Os outros tipos tinham apenas tido um acidente, o carro tinha-se despistado e não havia modo de sair dali. O intrépido repórter magicou aquela cena, rastejou por ali e contou uma história que nunca aconteceu. Na montagem, meteu o som do tiroteio… et voilá!Muitos anos depois, no Sudão. A história que eu perseguia era uma denúncia feita por várias organizações da extrema-direita católica norte-americana, da existência de mercados de escravos negros em zonas controladas pelas milícias arabizadas, conhecidas por janjaweed (palavra árabe que significa “pistoleiro”, mas que em vários dialectos tribais do sul do Sudão significa “diabo a cavalo”). Tentei começar a reportagem pelo lado das vítimas. Falei com dezenas de pessoas que o SPLA me trazia. Quase todas mulheres, convenientemente. Nunca encontrei ninguém com quem pudesse ter uma conversa a sós, olhos nos olhos. Era sempre através de intérprete. Não consegui nunca ter a certeza de que ele transmitia as perguntas que eu fazia, nem nunca consegui perceber se a tradução das respostas era ou não manipulada. A verdade é que muitas pessoas davam respostas curtas, às vezes monossilábicas, e a tradução era sempre um arrazoado longo sobre violações e torturas. Naquelas condições, não quis continuar a reportagem. Embora seja solidário com a causa dos negros sudaneses.

11 comentários:

escrevi disse...

Manipulação!
È disso que se trata, como sabes.
Tem sido esse o princípal tema em debate no blogue do Sofocleto.
Ela é real. As imagens que se apresentam aos nossos olhos não retratam a verdade.
Mas é verdade, então nós não estamos a ver na televisão "com estes olhos que a terra há-de comer"?
Como desmascarar, como dizer que é mentira depois de as pessoas verem?
Já falei no Sofocleto do filme "Manobras na Casa Branca" que eu acho que mostra de uma forma leve e divertida como se faz.
A montagem de imagens cortando e colando frames já não é mistério para quem tem de o fazer.
Por isso a verdade é tão importante.
Edita o livro. Conta toda a tua experiência. É importante para a reposição de muitas verdades.

Bokarras disse...

Caro amigo... vi com um sorriso que não consegui reprimir a referência ao Albarran e à forma como ele forjou uma reportagem de um incidente que nunca aconteceu.

Pergunto eu... será que na SIC ninguém perguntou porque não referiu, no seu trabalho, a existência de um ataque no terreno a um jornalista português?

E pergunto ainda... na altura em desmascarou o sucedido? Se não o fez, não acha que cabe ao jornalista expor a verdade ainda que isso vá colocar em xeque um camarada profissional?

CN disse...

Caro Bokarras, não posso desmascarar aquilo que não vi.
conto esta história do mesmo modo que ma venderam, refiro-me ao sucedido na Somália.

Anónimo disse...

Só alguém muito ingénuo acreditará que as notícias não são, muitas vezes, manipuladas. Mesmo com imagens reais (não encenadas, quero eu dizer) é possível montar uma história completamente diferente do que aconteceu na realidade. Infelizmente, há pessoas sem escrúpulos em todas as actividades. Quando é um jornalista, o caso é particularmente grave, porque quem não tem acesso à verdade (que é a maioria das pessoas) "engole" a notícia como verdadeira. É essa que fica para a História, se ninguém (credível) vier dizer que não foi assim. Junto a minha voz ao coro: para quando esse livro?

Anónimo disse...

Sem comentários. Mas com cumprimentos de quem tb gosta de Angie.

:)

125_azul disse...

Este post podia chamar-se "quem conta um conto..." ou podias usar aquele ditado espanhol: "se não consegues lutar, usa um grande chapéu". Que desejo oculto nos empurra para a intriga fantasiada de heroísmo? Abraço

Bokarras disse...

Caro CN...
Curiosamente, na resposta ao comentário anteriormente colocado há uma interrogação que se mantém: será que na SIC ninguém perguntou porque não referiu, no seu trabalho, a existência de um ataque no terreno a um jornalista português?
E já agora, na Somália também eram "roubados" os coletes à prova de bala dos repórteres no terreno?
Um abraço

CN disse...

Bokarras, não sabia que isto era uma entrevista...
Mas, para lhe responder, digo-lhe que não sei. Não sei se alguém reparou nisso. Também não seria de estranhar, porque quem anda em reportagem tem uma visão muito espartilhada dos acontecimentos, isto é, sabe do que se passou perto de si, apenas. Quem está em casa, ou na redacção, é que tem uma visão global dos acontecimentos, porque recebe informação condensada de vários canais e fontes. De modo que, acho eu, não me admira que ninguém se tenha admirado por eu não referir isso, até porque, além do mais, seria sempre uma referência a chamar a atenção para o trabalho da concorrência. Bom, espero que tenha respondido ao primeiro ponto.
Quanto ao segundo... não percebo a referência aos coletes e também não sei se na Somália se roubavam coletes ou não. Aliás, acho que ninguém os usava. Os coletes são demqasiado quentes. A mim não me roubaram nada. Mas sei que roubaram a outros, nomeadamente camaras de filmar e dinheiro.

Anónimo disse...

Máquina zero, tem toda a razão no que diz. Mas decerto concordará que quem dá a cara e/ou assina com o seu nome por baixo tem outras responsabilidades, nomeadamente dar provas do que afirma. Confortavelmente escondida atrás do meu nicknametambém seria capaz de ser contra tudo e contra todos, poderia perfeitamente andar por aí a lançar farpas a coberto do anonimato. Só que não me parece uma forma lá muito corajosa de estar na vida...

Motim disse...

Caro Carlos Narciso, já vi que passou pelo meu blogue. É uma honra :)

Tinha lido este texto ontem à noite e ficado a matutar. É que eu acho que me lembro de ver essa reportagem de Mogadíscio. E se não me engano algumas das imagens foram depois usadas nos spots de promoção desse canal transmitidas na altura...

SIPO disse...

Ainda bem que este blog EXISTE!!!

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Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média

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