Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.











terça-feira, janeiro 31, 2006

As caricaturas da ignorância

A crise política e diplomática provocada pela publicação das caricaturas de Maomé é a prova acabada de como é difícil entendermos os que nos são estranhos. Isto, partindo do princípio que a publicação das ditas caricaturas não foi feita com intuito provocatório. Acontece, simplesmente, que para nós, europeus, já nada é sagrado. E custa-nos entender as razões da zanga dos muçulmanos. Os preceitos religiosos islâmicos proíbem a representação do Profeta. Nas mesquitas não há imagens de Maomé, nem nas escrituras sagradas. Para os católicos, tudo é diferente. E nas igrejas, católicas ou ortodoxas, quanto mais imagens do Profeta melhor.
Depois, há outro pormenor: a liberdade de expressão. Nas democracias ocidentais não se pode limitar a liberdade, nem mesmo em nome de Deus. Embora isto não possa ser entendido como um dogma civilizacional… a verdade é que a liberdade de expressão e de imprensa são direitos fundamentais dos regimes democráticos. E temos de perceber que isto custe tanto a entender para um muçulmano, como para nós é difícil perceber os preceitos religiosos do islamismo.
É a ignorância mútua.

Angola, 1999 - campo de minas

Caminhava à nossa frente, com um pau na mão. O chão era de areia, ensopada pela chuva. O mato era denso, arbustos altos, poucas árvores. Não havia trilho. A recomendação era para pisar nas pegadas do homem da frente. Não tirava os olhos do chão, não fosse falhar a marca da pegada. Mas a voz do homem que seguia à frente, estava sempre nos meus ouvidos. “Ali tem mina”, “ali tem mina” dizia ele com frequência, desviando-se meio metro para a direita ou para a esquerda, para fintar a “semente do diabo".



Chegámos ao destino, o local onde estava mais um dos tanques russos que a UNITA tinha utilizado na última grande ofensiva sobre a cidade do Cuito. Estávamos em Janeiro de 1999 e a cidade acabava de se livrar de um cerco de 43 dias. O último, da longa guerra de quase 30 anos. No primeiro avião que lá aterrou, ido de Luanda, chegámos nós, eu e o Renato Freitas. Naquele dia, os combates estavam já a 50 quilómetros de distância, a UNITA batia em retirada, depois de ter tido o Cuito à mercê do tiro daqueles tanques, traficados à conta dos diamantes de sangue. Quem salvou a cidade foram as minas anti-carro colocadas por aquele tipo que nos guiava através do labirinto de morte “semeado” no planalto sobranceiro à cidade. O último tanque quebrou-se a apenas seis quilómetros de distância do Cuito. Os tripulantes eram brancos, ucranianos ou russos, não se sabe. Os que puderam fugir, eclipsaram-se, os outros morreram ali mesmo. Mas não tinham documentos de identificação, não se podia dizer quem eram. Estávamos, portanto, ali, a admirar o tanque de lagartas quebradas… para tirar uma foto melhor, escolhi um ponto ligeiramente mais alto, uma pequenina elevação de terreno, encimada por um arbusto seco… estava lá em cima, quando a voz se fez ouvir de novo: “aí tem mina”… olhei para o tipo e percebi que aquilo era comigo. Olhei para o chão e senti que estava onde não devia… antes de ter tempo de começar a tremer, a voz acrescentou “tem mina anti-carro”… os meus 85 kg não eram suficientes para a detonar…

Carta de Manila, 5ª parte (e última...)

A minha experiência. Chegado aqui a Manila tive que começar a trabalhar. O colega que estava a dirigir a revista World Mission tinha que voltar para Macau, para substituir outro colega português destinado à rotação em Portugal.
Não houve tempo para grandes adaptações à realidade, nem para estudar a língua. Que é o que mais falta faz. O inglês tem vindo a perder importância por aqui desde a década de oitenta. O meio de instrução mudou e a malta jovem cada vez tem mais dificuldade em exprimir-se em inglês. É comum telefonar para instituições onde a telefonista não sabe responder em inglês. Enquanto os países vizinhos asiáticos estão a fazer um esforço para aprendê-lo, os filipinos estão a esquecê-lo! Embora a revista seja em inglês, seria importante saber tagalog, a principal língua nacional, para comunicar e penetrar melhor na cultura e na vida das pessoas.
Os filipinos dizem-se acolhedores. Naturalmente, segundo cânones diferentes dos nossos. Na realidade são asiáticos e não é fácil entrar nas suas casas, quanto mais nas suas vidas. Parece que é preciso conquistar cada amizade com dedicação ao milímetro. Para eles conta muito a imagem, as aparências. O sorriso é uma espécie de espelho que não deixa ver o que está do lado de lá, de dentro. Muitas vezes dizem «sim», mas já decidiram que é «não».
Uma das piores experiências a este respeito foi com um bispo, muito popular e que conhece bem os combonianos. Telefonei-lhe a pedir um texto para a revista. Fiquei admirado porque acedeu a vir pessoalmente ao telefone. Respondeu positivamente ao meu pedido e deu-me logo o seu número de telemóvel e endereço de e-mail. Pedi-lhe o texto para daí a duas semanas. Mandei-lhe logo de seguida um e-mail a resumir o pedido. Terminado o prazo dado tive a oportunidade de ir visitá-lo com um colega e participar na sua festa de aniversário. Pediu-me mais uma semana para escrever. Passado esse tempo mandei-lhe outro e-mail, que ficou sem resposta; tentei telefonar-lhe, mas depois de reconhecer o número já não atendia as chamadas; mandei-lhe duas mensagens de texto para o telemóvel com semelhante resultado. Tive de atrasar a entrega da revista e mudar de planos. Entretanto, já passaram três meses, e ainda nem uma explicação tive, dele ou de algum secretário! Certamente, não sou tonto ao ponto de me deixar enganar mais alguma vez por ele!
Ainda não percebi o que esperam de nós, missionários. Num breve curso de introdução à realidade em que participei alguns convidados responderam: «nada»; enquanto outros disseram: «carinho e compreensão, porque fomos muito enxovalhados pelos colonizadores!» Fica-se com a impressão de que a aparente auto-satisfação e segurança é uma forma cultural de encobrir a fragilidade e a deficiente auto-estima.
O trabalho na revista é exigente. Em geral, quando vos levantais já eu tenho feito um dia de trabalho (depois da mudança da hora, andamos oito horas adiantados)! Para me ajudar, tenho uma secretária (que também corrige provas) e um paginador, ambos a part-time. O administrador e o difusor da revista também são combonianos portugueses. Os superiores lá terão percebido que isto estava a precisar de uma equipa de gente trabalhadora e de iniciativa. A tiragem anda à volta dos oito mil exemplares. O nosso sonho é torná-la auto-suficiente. O que implicaria um certo crescimento. Vamos lá ver se conseguimos torná-lo realidade.
Quero dizer-vos que vos lembro a todos com muita amizade e gratidão. Peço a Deus que vos cumule dos seus dons, a começar pelo da saúde.

José António M. Rebelo

nota final: publiquei esta carta em cinco partes. Poderão consultá-la a partir destes links: dia 25, dia 26, dia 27 e ontem. Visitem também o link que está no início deste post, para ficarem a conhecer o trabalho deste meu amigo.

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Mauritânia, 1985 - para além da reportagem (3)

A primeira preocupação, quando acordei na primeira manhã de detenção domiciliária, foi ir à janela espreitar, para ver onde estava o polícia que nos guardava. Não vi nenhum. Fui ao terraço da casa, para ver melhor. Não havia qualquer polícia à volta da casa, nem nas imediações. Depois do pequeno-almoço, arrisquei sair. Dei uma volta ao quarteirão, depois alarguei o raio de acção. Uma hora depois de andar às voltas da casa, percebi que ninguém nos guardava. Também não tínhamos para onde fugir… aqueles mauritanos eram espertos, sem dúvida. Mas tínhamos liberdade de acção. Decidimos ir ao banco trocar dinheiro. O único balcão que havia em Nouadhibou era do Banco Nacional da Mauritânia. Entrámos, não havia outros clientes. Fomos rapidamente atendidos pelo único funcionário à vista. Dissemos ao que íamos. Prontificou-se imediatamente a realizar a operação. Trocámos uma nota de 100 dólares americanos, julgo. O funcionário tinha um impresso na mão e procurava qualquer coisa… ao fim de uns minutos voltou ao balcão e perguntou-nos se tínhamos numa caneta… tínhamos. Pediu-nos a bic emprestada e entrou num gabinete, de caneta e papel em riste. Regressou com o papel preenchido e assinado pelo director do banco. No final, oferecemos a bic ao Banco Nacional da Mauritânia.

Carta de Manila, 4ª parte

Passatempos. O passatempo preferido dos filipinos é andar nos Centros Comerciais. Fazem fila para entrar logo às 10 da manhã. Não admira: pelo menos é onde podem ter ar condicionado de borla (e não só ventoinhas, como nas igrejas). Com as temperaturas que se registam por estes lados e o alto índice de humidade, é dos lugares onde estão mais frescos! A cadeia de SM (o nome original evoluiu de «Shoe Maker» para «Super Mall») é a mais numerosa. São enormes e em contínua expansão. Dão para tudo: até para “assistir” à missa ao Domingo (frequentemente num átrio e não numa capela).
Os filipinos são, segundo as estatísticas, os mais religiosos dos asiáticos (para já evito a palavra católicos!). E o que é curioso, também os mais corruptos (deixemos a discussão se existe ou não alguma relação entre as duas coisas para outra ocasião!). Aos Domingos, pelo menos, invadem as igrejas em vagas sucessivas para participar nas muitas missas que são celebradas e fazer as suas devoções.
Durante a novena de Natal, a maioria levanta-se ainda noite cerrada para participar no Simbang Gabi (as Missas que têm que começar e acabar de noite, e nos velhos tempos coloniais permitiam às pessoas assistirem à missa antes de irem para os campos). Em geral, são às 4.30 da manhã e registam a participação de autênticas multidões. O desporto nacional, diz-se, é comer. Qualquer actividade deve incluir uma «bucha», pelo menos. Há muitos e variados pratos, mas o arroz branco sem qualquer condimento é o acompanhamento de qualquer refeição. Devo confessar que ainda não o vi cozinhar. Mas a avaliar pela pasta compacta que vem para a mesa sou levado a pensar que gastam mais água a cozê-lo do que a cultivá-lo! Enfim, um dos casos em que a imaginação e a arte escasseiam!

(continua)

domingo, janeiro 29, 2006

A paragem do 59

Da janela de minha casa, hoje vi nevar. Acho que nevou no país inteiro. Deve ser uma excitação para os miúdos, até para graúdos. Vamos à rua, saboreamos o frio durante cinco minutos e voltamos a correr para casa, para os 25 graus Celsius do ar-condicionado. Mas há quem não possa fugir deste frio. Se forem até à Estação de Santa Apolónia, vão encontrar dezenas de velhos, pobres e sem casa, que não têm para onde fugir.
Quando em Outubro de 2003 fui trabalhar para a TSF, voltei a fazer reportagem do dia-a-dia. Voltei à tarimba que tinha deixado há 20 anos.
Fiquei na equipa da “manhã 1”. A equipa que tem a honra de produzir a informação do prime-time da rádio, que é entre as 7 e as 10 da manhã. Os “heróis da manhã 1” entram ao trabalho às 4 da manhã. Era a essa hora que ia para a rua, procurar histórias. Uma das reportagens que fiz, logo nos meus primeiros dias de TSF, foi na Estação da CP de Santa Apolónia.
Ainda me lembro como começava essa reportagem: “são cinco e meia da manhã. A paragem do 59, em Santa Apolónia, tem oito pessoas. Sete esperam o autocarro, um dorme, deitado no banco estreito”… a paragem do 59 fica mesmo em frente à estação dos comboios. Lá dentro abrigavam-se muitos outros. Dessa reportagem guardei memória do velho António, 77 anos, e de Cândido de 58. Acho que os outros não quiseram falar comigo.
Nestes dias e nestas noites de frio, são eles quem vão passar mal.

Angola, um sítio em reconstrução

A reconstrução de Angola parece estar em marcha acelerada. Depois da anunciada reabilitação dos Caminhos de Ferro de Benguela, foi agora notícia a recuperação da estrada Luanda-Lobito.
São duas obras de importância primordial para o país, que possibilitarão o renascimento do parque industrial e comercial. A estrada do Lobito para Luanda… esteve décadas sob controlo da guerrilha da UNITA. Nos anos 90 retomou-se a circulação, mas só sob protecção de colunas militares. Mesmo assim, às vezes, levava mais de um dia a percorrer os 400 e picos quilómetros de buracos com asfalto à volta.
A destruição da estrada foi um acto propositado da guerrilha. Obrigando a uma circulação muito lenta, aumentava-se a possibilidade de emboscar com sucesso os veículos que por lá transitavam. Nas bermas, semearam minas anti-carro e anti-pessoal, de tal modo que quem se quisesse suicidar, bastava-lhe sair do carro e ir mijar à berma.
Tudo isso acabou. Ainda bem.

sábado, janeiro 28, 2006

Grafittis

Li há dias, no site da Lusa... A polícia de Lagos deteve 3 miúdos que andavam a grafittar vários monumentos históricos e culturais da cidade.
A PSP só divulgou a idade dos jovens: entre 17 e 19 anos. Isto é, já não são crianças e devem saber o que andam a fazer.
Quando foram detidos, os rapazes tinham 20 latas de spray de várias cores, o que indicia que a tarefa foi planeada.
Não sei qual foi a decisão do Tribunal de Lagos sobre este acto de “vandalismo de monumentos património do Estado, espaços públicos, estabelecimentos comerciais e residências particulares”, tal como parece que consta no auto de detenção elaborado pela PSP. Mas, para o caso, pouco me interessa… O que eu penso que importa é perceber o que motiva os jovens a andarem por aí a borrar paredes, estátuas e muros.
Dei uma volta aqui ao quarteirão, prestei atenção no caminho para o emprego e reparei que os grafittis estão por todo o lado.
E, quase todos, têm uma mensagem. Além de uma preocupação estética, acho eu. Mas é a mensagem que me importa destapar…
É óbvio que alguns são sinais demarcadores de territórios.
Uma nova revolução em marcha?

Para além desta esquina, é território dos “Tigres da Malásia". Violência? Denúncia ou exibicionismo impune? Combate étnico… Racismo pútrido… Os sinais de fricção social, são evidentes. Passamos tão rápido, que nem os vemos. Ou não queremos ver, propositadamente.

Mas nós, cidadãos, individualmente considerados, temos direito à cobardia. Agora, o Estado não tem. E não basta mandar a polícia prender “uns putos” que andam a sujar as estátuas. Importa saber o que eles querem dizer com aquilo, saber que conflitos se revelam nestes códigos, que medos se desenham, importa decifrar estas mensagens, estes sinais.

Nanyuki, o bichano na soleira da porta

Nanyuki é uma aldeia no Norte do Quénia. O que mais distingue esta localidade de outras, no Quénia, é que fica mesmo na linha do Equador. É um dos pretextos usados para levar turistas até lá. Por isso, tem várias estalagens implantadas em reservas de caça, locais propícios para quem gosta de contemplar natureza selvagem. Para além da aldeia indígena há, em Nanyuki, um “bairro” de milionários brancos que chegam e saem de helicóptero e que, normalmente, usam aquelas casas para fins-de-semana prolongados. Há uma dessas casas que é residência permanente de um suíço alemão, fotógrafo especializado na natureza selvagem, radicado no Quénia já há muitos anos: Karl Ammann.
Fui hóspede dele várias vezes. E, antes de me habituar às peculiaridades de Ammann e da sua casa, apanhei alguns sustos…
Na realidade são duas casas. Uma onde ele vive, a outra onde recebe os hóspedes. Ficam, as duas, numa encosta arborizada, perto de um rio onde, ao entardecer, vão beber zebras, búfalos e girafas. De uma casa para a outra há um caminho de pedra. Uma noite, depois do jantar, recolhia aos aposentos, saltitando de pedra em pedra, quando vi, deitada na soleira da porta, uma chita. À luz da lanterna, os olhinhos do bicho brilhavam ameaçadores… fiquei pregado ao chão, a uma distância razoável. Se me voltasse, temia ser atacado pelas costas. Se me mexesse, temia provocar alguma reacção ao animal… aquilo durou bem mais de 5 minutos. Depois, a chita espreguiçou-se, levantou-se e, calmamente, saiu dali, sem sequer passar por perto. Corri para casa, tranquei a porta e verifiquei todas as janelas. Com o coração aos saltos, custou-me a adormecer. Na manhã seguinte, Karl achou muita piada à história… a chita é quase animal de estimação da casa. Cresceu ali, desde bebé. Embora selvagem, é mais mansa que um gato, jurou. Tinha-se esquecido de me avisar…

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Indiferença criminosa

Acho espantoso que se esteja a repetir o mesmo erro cometido no Rwanda há anos atrás.
Desta vez, nem há a desculpa da falta de preparação… já toda a gente falou que o genocídio das tribos africanas está em curso no Darfur, mas ninguém mexe uma palha.
Tony Blair disse, há dias, que "a comunidade internacional está a falhar perante o povo de Darfur". Mas não passou das palavras, não ensaiou nenhum tipo de acção efectiva. E podia.
António Gueterres, o senhor ACNUR, disse quase o mesmo. As potências mundiais encolheram os ombros.
Kofi Annan manifestou-se "pessimista" sobre a situação em Darfur, e apelou à comunidade internacional a agir porque "não há mais tempo para a indiferença". Mas continuaram, todos, indiferentes…
A União Africana tem no Darfur uma missão de paz composta por quase 7.000 efectivos, mas alertou já que a missão está em risco por falta de financiamento. A acção desta força tem sido, de resto, perfeitamente ineficaz. O conflito em Darfur agudizou-se em Fevereiro de 2003 e, desde então, provocou já mais de 400.000 mortos e quase dois milhões de deslocados e refugiados.
A acção do governo sudanês no Darfur, está a ser investigada pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por suspeita de crimes de guerra e contra a humanidade.
Mas, como tenho dito nestas páginas, o Darfur não é caso único da política genocída do governo sudanês. As 51 tribos do povo Nuba sofrem as mesmas acções criminosas e, igualmente, o Mundo não se move para parar a matança. O paralelismo com o que se passou no Rwanda, é mais do que evidente. A comunidade internacional só agiu quando passou a ser insuportável permanecer quieto.
Se em 6 de Abril de 1994, depois do “acidente” aéreo onde morreram os presidentes do Rwanda e do Burundi (facto que deu início à matança), os acontecimentos surpreenderam, com o que se está a passar no Sudão não se aceita este imobilismo criminoso.

Carta de Manila, 3ª parte

"A aventura do trânsito. O que mais impressiona, chegando aqui, é o caótico trânsito, verdadeiro teste à paciência dos nativos, quanto mais dos estrangeiros! Não respeita qualquer regra: é comandado pela necessidade e o livre arbítrio. Algumas vezes assinalados pela mão de fora. Deve ser a única recomendação que os vendedores de Cartas de Condução dão aos seus clientes!
Os senhores da estrada são os «jeepneys», uns autocarros feitos à imagem e semelhança dos jipes americanos do tempo da segunda guerra mundial. Têm dois bancos laterias a todo o comprido. O pagamento passa de mão em mão até chegar ao condutor, que depois devolve o troco da mesma maneira (se o passageiro for estrangeiro, tentará esquecer-se!). São o principal transporte público e a eles se deve o congestionamento das vias: param onde lhe dá na real gana e guinam em todas as direcções sempre que podem e for necessário. Os condutores devem ser gente patriótica: num tempo em que a Presidente tem apelado à poupança de energia é comum encontrá-los de noite com as luzes desligadas!
Depois há alguns autocarros vindos da sucata do Japão e da China – os chamados «caixões ambulantes», pela ameaça que representam. Apesar de andarem meios «delapidados», voam a baixa altitude. E os passageiros saltam nos bancos de madeira. Menos agressivos há os táxis e os «trycicles», as motos-táxi com a caixa lateral para os passageiros. Os peões antes de se atreverem a cruzar a rua devem ganhar coragem e fazer uma acto de fé.
Todos estes veículos queimam galões de óleo e exalam nuvens espessas de dióxido de carbono, que dá cabo da saúde dos cidadãos e chega a impedir a visibilidade dos condutores dos outros veículos. Pelos vistos, todos passam na inspecção, à excepção do nosso novo Ford! Com uns pós de várias cores nos canos de escape podiam conseguir um efeito visual extraordinário, mas ainda não se lembraram disso! Antes de se sair de casa é conveniente pensar bem antes de tomar uma decisão tão grave, de que geralmente nos arrependemos. Consomem-se horas nas filas de trânsito e para se ter a certeza de chegar a tempo a qualquer lado é preciso sair com muita antecedência. Por isso até agora tenho optado muito pela vida caseira."

(continua)

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Hamas não é sinónimo de paz

O melhor que pode acontecer aos radicais extremistas israelitas é terem pela frente um governo radical extremista palestiniano. Uns justificam os outros e, juntos, justificam a espiral de terror e violência que há décadas se abate sobre os dois povos.
O resultado das eleições legislativas palestinianas, com a vitória dos islamistas do Hamas, não é sinónimo de paz. Os falcões de guerra já sorriem… e é pena, porque os palestinianos tinham muito por onde escolher, nestas eleições. Não foi por falta de candidatos… mas quem sou eu para os criticar… sei que o Hamas tem tido, ao longo dos anos, um papel importantíssimo no apoio aos mais pobres da sociedade palestiniana. Não se limitaram a apoiar a resistência armada. É também esse papel social que os palestinianos vêem no Hamas e, também por isso, votaram nesse partido.

Os “meus” candidatos eram outros. Aposto que se tivessem sido eles os escolhidos, o futuro da Palestina seria menos conflituoso. Refiro-me aos dirigentes da Terceira Via, o partido formado por Salam Fayyad e Hanan Ashrawi (a senhora da foto). Mas a Terceira Via só elegeu dois deputados, contra os 76 do Hamas. Não terá, portanto, qualquer importância na definição das políticas palestinianas. Poderão ser, quanto muito, a vozinha da consciência do poder. Desde que o barulho dos disparos não lhes abafe a voz.

O reptilário (1)

São 15 e 40 e acabo de olhar de relance para o televisor. Na pantalha, a emissão da SIC-Notícias e um programa sobre casos de polícia. Estava lá um director da judiciária a comentar os casos, apresentados pela jornalista Sofia Pinto Coelho. Nunca vi o programa antes, não sei dizer o que vale, mas a Sofia é competente e, portanto, imagino que esteja a fazer bem. Uma das reportagens tinha a voz do Luís Garriapa, outro dos bons jornalistas da casa.
Quando o Garriapa começou na SIC, parecia um miúdo assustado. Mas deu para perceber que, debaixo da timidez, estava um repórter arguto e esforçado. Fiz tudo para que ficasse lá a trabalhar. Fez parte da minha equipa no “Casos de Polícia”. Gosto de ver que se mantém vivo, no reptilário

Mauritânia, 1985 - para além da reportagem (2)

Em 1985, estar preso na cadeia de Nouadhibou era uma experiência do “além”… os detidos nem eram alimentados convenientemente. Ou tinham família que lhes levasse um prato de sopa ou tinham de se sujeitar à ração fornecida pelo Crescente Vermelho, uma organização similar à Cruz Vermelha existente em países muçulmanos. E essa ração… não era comestível.
As nossas perspectivas para o futuro imediato não eram brilhantes, como podem imaginar. As primeiras horas de detenção foram confusas. De toda a equipa (éramos quatro) só eu falava francês suficiente para discutir condições com o Chefe da Polícia. Mas, quem já passou pela experiência sabe, discutir com sucesso com um árabe é uma tarefa ao alcance de poucos. Foi um pormenor (como sempre…) que nos salvou. No mar, antes de abandonarmos o barco, o capitão tinha-me dito que, caso surgisse algum problema, “para chamar o Dimas”. E assim fiz. Pedi ao Chefe da Polícia para chamar o “monsieur Dimas”.
Quem é o Dimas? Dimas dos Santos, o único português que vivia naquele fim do mundo, capitão de armamento de uma empresa de pesca mauritana. Era uma espécie de santo protector dos pescadores portugueses que andavam por aquelas paragens. Era um “desbloqueador” de problemas. Quando Dimas chegou à cadeia, demorou apenas algumas horas a negociar a nossa condição de prisioneiros. Ficámos detidos, ainda, mas em prisão domiciliária… em casa do Dimas.

Carta de Manila, 2ª parte

"Nesta República, o que conta é a solidariedade familiar, na política como no resto: quando um familiar é eleito ou promovido para qualquer cargo de responsabilidade, comem todos; quando faz uma asneira, pagam todos! Não há escândalo com isso.
O sistema favorece a corrupção. A Presidente distribui com liberalidade, como se fosse a dona da massa. Que não se percebe de onde vem. O dinheiro do Estado é distribuído não pelas regiões ou pelos municípios, mas pelos deputados, a quem serve para manterem a sua clientela e para mostrarem aos eleitores alguma obra feita. Por exemplo, o Presidente da Câmara da cidade onde vivemos, Parañaque, acabou de fazer novos passeios. Pois bem, em cada ladrilho mandou imprimir em letras garrafais as iniciais do seu nome, «JB», para que os eleitores não se esqueçam no momento de votar. Mas, se por acaso não o reelegerem, o próximo já terá aplicação para os fundos: tapar o nome do anterior!
Os filipinos são um povo migrante. Qualquer emigrante é a fonte se subsistência da família: quem fica já não precisa de trabalhar. Basta-lhe ter um telemóvel para lhe mandar regularmente mensagens a lembrá-lo do sagrado dever de mandar remessas. A alternativa é arranjar um ancião americano rico através da Internet, que garanta o futuro das garotas a troco de lhe servirem de bengala!"

"São os emigrantes – e não as politicas da senhora Glória Arroyo e da sua comandita – quem está a aguentar o peso (a moeda nacional) e o país. As suas remessas devem bater este ano o recorde de 10 mil milhões de dólares. Estou em crer que a Presidente deve passar mais tempo a maquilhar-se e a escolher a indumentária para a fotografia da manchete diária dos jornais (mesmo que não haja notícia correspondente) do que a governar! Não deve haver outro país no mundo onde haja tantas Fundações e organizações não-governamentais com tamanha variedade de projectos em favor dos pobres; e os pobres estão cada vez pior!"

(continua)

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Carta de Manila, 1ªparte

Pelo Natal, recebi carta de um amigo, o José Rebelo. Escreveu de Manila, nas Filipinas e fala do país que está, agora,a conhecer. Era uma espécie de “carta aberta”, dirigida não só a mim como a muitos outros amigos dele. Chegou por e-mail e vou, agora, divulgá-la por partes.

I parte.

“Desde o início de Agosto que me encontro nas Filipinas, um arquipélago de sete mil e tal ilhas (o número varia consoantes as marés) e muitas mais maravilhas. Certamente, para muitos, o nome deste longínquo país, geográfica e culturalmente, não desperta particulares memórias, para além das histórias sobre as extravagâncias da Imelda Marcos. A ex-primeira dama perdeu a ‘modesta’ colecção de pares de sapatos, que faziam parte do seu guarda-roupa, mas ainda não deixou de reclamar a propriedade das jóias com que se adornava.
Desde 1986, o povo já desceu à rua para destituir dois Presidentes – em duas notáveis revoluções sociais, que deram ao mundo uma lição de poder popular – e ainda está a decidir se deve ou não destituir a actual, na base de alegadas fraudes eleitorais. Que parecem ser cada vez mais uma evidência, a julgar pela sua obstinada recusa em esclarecer o que se passou! Aos protestos, a administração responde com jactos de água. Até alguns bispos já foram «benzidos». Depois de ter ameaçado com a imposição da Lei Marcial, o Governo ficou-se pelo uso da «resposta calibrada preventiva».
O combate político tem as suas peculiaridades. É feito com orações, procissões e terços à mistura. Pouco a pouco a oposição tem vindo a desgastar a imagem da Presidente, cuja popularidade atingiu nestes dias os seus mínimos históricos. Para deitar abaixo os adversários vale tudo. Só um exemplo ilustrativo: nestes dias, um General na reserva e ex-ministro proclamou-se «Presidente de um Governo revolucionário de transição». Foi, naturalmente, preso por decisão política (!), na base de «Incitamento à sedição»; e os familiares em postos de chefia demitidos, como se fossem responsáveis pela decisão do velhote!”

(continua)

Sudão, os Nuba (3)

Nas Montanhas Nuba, no Sudão, fui testemunha do milagre da multiplicação… das galinhas.
Num dos locais onde parámos para retemperar forças havia uma espécie de hospedaria. Era uma palhota de pau a pique, sem paredes. Tinha uns muros baixinhos que dividiam a casa nas várias salas. E tinha uma zona onde se cozinhava, numa fogueira de lenha.
Ficámos ali quase 24 horas. As bolhas nos pés estavam a matar-nos… De modo que vi aquela senhora cozinhar para muitas pessoas.

Vinham aos grupos familiares, era gente que se tinha deslocado da aldeia onde viviam até aquele mercado. Por causa da guerra, os Nuba não têm mercados junto às aldeias. Normalmente, os mercados ficam em locais equidistantes de várias povoações. Assim, tentam evitar grandes aglomerações de pessoas e limitam a tendência para a formação de grandes aglomerados habitacionais. Com esta medida, minimizam o efeito dos bombardeamentos aéreos governamentais. As pessoas, quando precisam de trocar produtos, deslocam-se a um desses locais. Não há dinheiro em circulação, de modo que é preciso carregar alguma coisa que valha para a troca com aquilo de que se necessita. Moeda forte, por lá, são “pepitas” de sal e roupa. O sal é raríssimo e chega em caravanas que conseguem furar o bloqueio que o exército do governo faz às Montanhas Nuba. A roupa, só mesmo a que chega nos voos clandestinos das ONG humanitárias ou do padre Renato Kizito.
Então, nessa hospedaria, a senhora tinha uma galinha, pronta a ser cozinhada. Vi essa galinha ser fervida umas 15 vezes, ao longo desse dia. A mulher, por cada fervura, juntava na panela umas verduras e sementes de sésamo. Servia o caldo, mas guardava a carne que, depois, voltava a ferver para os clientes seguintes. Por cada fervura, a galinha ia soltando alguma carne, até que desapareceu por completo. Mas, deste modo, uma galinha ajudou a alimentar dezenas de pessoas.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Somália, 1992 - uma garrafa de água

A RTP chegou a Mogadíscio num avião fretado em exclusivo. Era uma equipa numerosa, parecia até uma televisão rica… o chefe da missão era Artur Albarran, mas havia um outro redactor, mais um repórter de imagem. Uma montanha de caixotes com algum equipamento e muita água e comida. Os tipos iam prevenidos…
Quando soube que eles tinham chegado, fui à procura deles. Sabia que estavam alojados nas instalações da UER (Union Européenne de Rádio-Télévision). Era uma situação de luxo, já que estavam alojados no mesmo local onde trabalhava uma das mais importantes pools de recolha de imagens… e de onde se faziam os envios para o satélite. Estranhamente, iam editar no Kilometer Seven, no mesmo local que eu e, curiosamente, com o mesmo editor, Sean, um irlandês meio chanfrado que acabou por ficar meu amigo.
Encontrei-os ainda a desfazer as malas… da equipa, só conhecia Albarran. Os outros já tinham entrado na RTP depois de eu ter saído para a SIC. Albarran é daqueles tipos que exibe o sorriso mais caloroso mas não perde a frieza de cálculo. Conversámos durante algum tempo, trocámos algumas impressões, dei-lhe algumas dicas sobre o ambiente e as dificuldades de trabalhar num sítio daqueles e, depois, olhando para os caixotes de comida, perguntei-lhe se tinha garrafas de água que me pudesse dispensar… “trouxemos poucas”, disse-me. Mas prontificou-se a dispensar-me uma, de litro e meio. Foi a outra sala, onde estavam guardadas as paletes de garrafas de água, tirou uma. Vi-o entrar de novo na sala onde tinha ficado à espera… vi-o dar três passos na minha direcção… e vi a garrafa escapar-lhe da mão e cair… e vi a garrafa de plástico a rebentar… e a água mineral a derramar-se… ainda consegui agarrar o fundo da garrafa e salvar 1/10 do conteúdo. Ficámos a olhar um para o outro. Eu, com o resto da garrafa na mão. Encolheu os ombros, percebi que não haveria segunda garrafa. E não houve, mesmo.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Parasitas

Passo a passo, os cientistas continuam a batalha contra a doença que mais mata no Mundo: a malária.
Foi notícia, na BBC, que um grupo de cientistas do Instituto Pasteur de Paris conseguiu seguir as “pegadas” do plasmodium (o parasita imaturo), assim que o mosquito pica na pele da vítima. Segundo percebi, os cientistas conseguiram colorir com tinta fluorescente o plasmodium e, assim, puderam seguir-lhe o rasto no organismo de ratinhos cobaias.
Para já, ficámos a saber que cada picada injecta cerca de vinte parasitas no corpo. Não sei onde estas pesquisas irão dar, mas sei que é urgente que se descubra uma vacina ou qualquer outro tipo de tratamento eficaz para debelar esta doença. A malária mata mais que a SIDA. E mata há muito mais tempo… É uma doença terrível, que dá cabo de qualquer um. Já vi homens, fortes como touros, morrerem de malária em 3 dias. Já tremi, diversas vezes, com crises de malária. A minha passagem de ano de 2000 foi numa cama do Hospital Egas Moniz, em Lisboa, depois de uma viagem ao Congo. Há dois tipos de plasmodium, o falsiparum e o vivax… e já me diagnosticaram os dois em simultâneo. Tenho mais medo desse parasita que de tipos armados em maus…

Mário Soares, in the end of the day...

O soarismo terminou, assim, numa derrota aos pontos. Outros combates virão, mas jamais com os mesmos antagonistas. Mário Soares terminou, ontem, uma brilhante carreira política, em que teve mais vitórias que derrotas, em que deu mais do que recebeu. Nunca gostei muito do modo como tratava os outros… Sempre pensei que Soares era demasiado arrogante, embora isso não transpareça para o público. Mas votei nele. Votei nele, pela 2ªvez na vida. Na primeira vez, em 1986, votei por convicção. Ontem, votei por exclusão de partes mas, também, pelo respeito que me merece este “mais velho”, ainda lutador aos 81 anos. O que ele disse, ontem, na hora da derrota, é uma espécie de lema que gostaria de poder adoptar: “só é derrotado, quem desiste de lutar”.

Somália, 1992 - a encenação continua (2ºtexto)

A fome ameaçava matar toda a gente. Havia perto de meio milhão de somalis agonizantes, à míngua de pão e água. Poucas crianças sobreviviam além dos 5 anos. A fome e a mal nutrição matavam quase tanto quanto as balas e os obuses.
Os senhores da guerra desviavam, roubavam, a ajuda alimentar destinada ao povo. Alimentos, medicamentos, até roupa, entravam assim no mercado negro e engordavam contas bancárias nos off-shores.

No Outono de 1992, as Nações Unidas tentaram pôr cobro a esta situação caótica e injusta. O Conselho de Segurança deliberou uma intervenção militar para tornar possível a acção das ONG humanitárias, para parar com as matanças entre clãs, para reorganizar minimamente o Estado. Essa operação chamou-se “Restaurar a Esperança”. Quando as primeiras tropas desembarcaram na praia de Mogadíscio, em 9 de Dezembro de 92, eu já lá estava. Eu, mais uma multidão de jornalistas de todo o Mundo.
O desembarque dos marines em Mogadíscio foi um espectáculo. Não é adjectivo. É substantivo. Foi, de facto, uma comédia. A CNN, a CBS, a NBC, a BBC tinham sido informadas com antecedência. Todos sabíamos que era naquela noite. Os meteorologistas previram céu limpo. Era Lua Nova. A noite estava escura que nem breu.
As network mundiais construíram um palanque gigante, largo e alto, em tubo de ferro e madeira, onde montaram as suas cameras Betacam equipadas com infravermelhos, para poderem filmar de noite e sem luz artificial. Através deles, o desembarque “deu” em directo para todo o Mundo.
Eu e muitos outros jornalistas deambulávamos pela praia, para vermos o desembarque ao vivo. Tropecei mais de uma vez em soldados camuflados no escuro. Eles tinham óculos de visão nocturna, eu não via um palmo à frente do nariz. Foi uma palhaçada. Os marines sabiam que o desembarque era seguríssimo. Não havia necessidade daquele show. A não ser que se tenha pretendido, apenas, garantir audiências televisivas e venda de jornais. Ou disseminar propaganda. O desembarque americano na praia de Mogadíscio foi uma demonstração de força da superpotência. Pela primeira vez, os americanos ensaiaram novas armas e novos veículos militares, em cenário real.

Quem não ficou boquiaberto com o surgimento do LCAC (Landing Craft Air Cushion)?... Um monstro anfíbio capaz de transportar tanques, camiões e centenas de homens dos navios até à praia... e foi também na Somália que os primeiros Hummer entraram em acção...
...os primeiros testes deste jeep militar não foram própriamente um sucesso. Lembro-me de ver muitos avariados, logo nos primeiros dias. E se, no deserto, não tinham grandes problemas, para circularem na cidade, nas ruas estreitas de Mogadíscio, não foram a melhor opção. Aqueles Hummer tinham 2 metros de largura... não cabiam nas ruas mais apertadas.

domingo, janeiro 22, 2006

URSS 1985, um frio dos tomates

As populações da Rússia e dos países nórdicos estão a sofrer com o frio terrível.
Ouvi, ontem, no Telejornal do Canal 1 que já morreram 76 pessoas em Moscovo. Morrer de frio, deve ser horrível…
Estive em Moscovo, em Dezembro de 1985. Fui… “de férias”, com um amigo e companheiro de trabalho chamado Mário Lindolfo. A viagem fazia parte do prémio que tínhamos recebido nesse ano, por uma reportagem feita em conjunto. Um dia contarei essa história.
Vem isto a propósito do frio… é que, nesse Inverno, para nossa desgraça, o frio também apertou desmesuradamente. Na primeira manhã, acordei e vi, pela janela, um nevão fantástico. Para mim, aquilo era novidade quase absoluta. Fiquei maravilhado pelo espectáculo. Tomei um duche, pedi o breakfast e saí para a rua. Dei dois passos e senti agulhas espetadas na cabeça. Levei as mãos à cabeça e o cabelo partiu-se entre os dedos… não tinha secado a cabeça (nunca o faço) e, ao ar livre, a água que estava no cabelo tinha gelado em dois segundos.

Estivemos lá 15 dias. Adorei a cidade e as pessoas. Apenas o frio… não havia roupa que o afastasse. Cheguei a caminhar com as mãos enfiadas (à vez) nas calças, junto aos tomates. Era a única maneira de as manter quentes. E aos ditos cujos.

sábado, janeiro 21, 2006

Kosovo, Rugova não deixou herdeiro

Sempre que alguma coisa acontece nos Balcãs, a Europa treme. A desintegração da Jugoslávia, as limpezas étnicas cometidas por sérvios, albaneses, bósnios e croatas, uns contra os outros, provocaram uma tremenda crise europeia que tornou inevitável mais uma intervenção militar norte-americana em solo europeu.
Depois da Croácia e da Bósnia Herzegovina terem restaurado as respectivas independências, sobrou a questão do Kosovo.
A Sérvia pretende manter o território como sua província, concedendo-lhe um estatuto de região autónoma. Alega que o Kosovo é o berço do nacionalismo sérvio e alega que controla o território desde há centenas de anos. Contra os argumentos históricos invocados pela Sérvia, os kosovars reivindicam o direito à autodeterminação. Em 1999, o exército sérvio foi expulso do Kosovo, pela força dos bombardeamentos da NATO que entrou no território para impedir a aniquilação total dos kosovars. O território, desde então, é governado pelas Nações Unidas.
Ibrahim Rugova foi o dirigente kosovar escolhido pelo Ocidente, para liderar o povo e controlar os ímpetos belicistas das facções radicais. Rugova era conhecido pelo povo, dirigia um partido político desde o final da década de 80, depois da queda do Muro e da desintegração da URSS. E era um moderado, característica muito apreciada por americanos e europeus. Assim, Rugova teve meios para se afirmar como líder. Os políticos nacionalistas mais radicais nunca lhe fizeram uma verdadeira oposição. Preferiam dar tempo ao tempo. Agora que Rugova morreu, talvez tenha chegado a hora de endurecer essa luta. Dentro de dias, em Viena de Áustria, deveria começar a negociação para se decidir o estatuto final do Kosovo. A negociação foi adiada, devido à morte de Rugova.
Durante o tempo em que andei pelo Kosovo, não foi difícil de verificar que os independentistas nunca desarmaram, de facto. As tropas da NATO bem tentavam recolher armamento que tivesse sido distribuído pela população, mas só encontravam armas velhas e facas de mato… as patrulhas militares, na montanhosa fronteira com a Albânia, tentavam parar o tráfico de armas para os nacionalistas, mas as capturas eram quase nulas… nas imediações dos aquartelamentos da NATO havia, sempre, uma instalação do UCK, o Exército de Libertação do Kosovo, em local estratégico para vigiar os movimentos dos soldados estrangeiros. A população permanecia mobilizada para a contestação.

Quase semanalmente, uma manifestação nacionalista mantinha a chama acesa… por esses dias, em Pristina (a capital), os assassinatos políticos eram rotineiros… a intervenção da NATO impediu uma guerra aberta, mas para garantir a paz e a estabilidade mantêm-se no território cerca de 17.000 soldados da NATO, 2.000 dos quais norte-americanos. O UCK pode estar a sentir que chegou o momento de adquirir a independência do território. Os EUA e aliados estão demasiado ocupados na estranha guerra contra o terrorismo, o Iraque, o Irão, a Síria, a Coreia do Norte, enfim... não devem querer arriscar mais uma frente.

Angola, 1998 - O Palmeirinha

Em Agosto, Setembro e Outubro de 98, voei no “Palmeirinha” várias vezes. Era um Antonov de uma empresa que prestava serviços ao Estado angolano, nomeadamente, no transporte de carga para as províncias do interior durante a guerra. Os aviões cargueiros também levavam passageiros, viajavamos entalados nas sacas de arroz ou entre as paletes de cerveja. Ali não havia problemas com cintos de segurança nem demonstrações da assistente de bordo sobre como accionar o colete salva-vidas.
Uma vez, nas manobras para se encaminhar para a pista, o “Palmeirinha” ficou com uma asa entalada debaixo de outro avião maior. Tivemos de ser nós, os passageiros, a sair para a pista e empurrar o avião de modo a desentalá-lo.
Outra vez, um dos motores do “Palmeirinha” ficou sem pressão de óleo, o piloto fez meia volta e aterramos em Luanda só com um motor a trabalhar.
Mas o que mais recordo das viagens do “Palmeirinha” foi, num regresso da Lunda Norte para Luanda, com o avião com o porão vazio, uma grande futebolada que fiz com o Carlos Santos, a 8 mil metros de altitude, para aguentar o frio que entrava pelas frinchas da estrutura do avião...

sexta-feira, janeiro 20, 2006

Guiné Bissau, memórias em ruína

Faz hoje 33 anos que Amílcar Cabral foi morto. Foi de noite, em Conackry. Se a morte do dirigente do PAIGC foi um golpe das operações especiais portuguesas, tratou-se do golpe mais bem sucedido de toda a guerra colonial. Mas foi um golpe fatal para o futuro do povo guineense, como hoje bem sabemos. Nenhum dos dirigentes que sucederam a Amílcar Cabral teve o engenho ou a vontade para se dedicar ao bem-estar e ao desenvolvimento do país. Amílcar teria tido, estou certo.
Trinta e três anos depois, a memória de Cabral jaz, entre tábuas apodrecidas, na parada do Forte da Amura, em Bissau. Para vergonha dos guineenses...

Trinta e três anos depois, o mausoléu de Amílcar permanece na sombra das grandes acácias. Porque as velhíssimas acácias permanecem de pé. E teimam em ser generosas.

Trinta e três anos depois, o carinho dos guineenses pelo pai da nacionalidade esvai-se na ferrugem que consome o velho VW que pertenceu a Amílcar (em Conackry) e que está abandonado, também, num canto do Forte da Amura.

As fotos foram tiradas por mim, em 2004. A memória de Amílcar espelha o que o país hoje é: uma ruína.

In dubio, pro reo

Souto Moura insiste que a notícia do 24 Horas é falsa, mas a argumentação que usa parece-me demasiado frágil. Diz ele que o Ministério Público não investigou as 80 mil chamadas rastreadas no documento que a PT enviou… Mas ficamos só com a palavra de um homem que, mesmo sendo Procurador-Geral da República, não está acima de qualquer suspeita.
Diz a experiência que vale tudo, quando se defendem interesses corporativos. E sabemos todos como é fácil para um Procurador-Geral da República accionar tribunais contra um jornal. Portanto, não creio que o 24 Horas se tenha descuidado, neste caso.
Segundo Souto Moura reconheceu hoje no Parlamento, a disquete com a facturação detalhada do telefone de Paulo Pedroso, enviada pela PT, continha “outros números, sem menções de quaisquer nomes”, mas o Ministério Público “nunca tentou decifrar o que estava a mais”. Acredite quem quiser… mas a dúvida é pertinente.
Quanto ao “rigoroso inquérito” instaurado depois de ter sido recebido pelo Presidente da República, ainda a decorrer, Souto Moura já ensaiou uma boa desculpa: o Ministério Publico tem “um papel modesto” nas escutas telefónicas e “não é obrigado, em cada caso concreto, a controlar o trabalho das polícias e dos juízes”.

Querem sempre aparecer muito competentes, lá do alto da autoridade que lhes é conferida pela Lei, mas os fracassos e gaffes são uma constante. Falo do que sei, da experiência adquirida ao longo de 3 anos de responsabilidade editorial do "Casos de Polícia" em que fui alvo de 18 processos e nunca perdi nenhum.

Castro Laboreiro, 1984 - oração aos cães

Cheguei a Castro Laboreiro morto de frio. E assim fiquei durante os 8 dias que durou aquele trabalho. O frio, de rachar, contrariou-se com aguardente de maçã. De hora a hora, lá ia um copinho… aquilo a que hoje chamaríamos “shot”. Bebi muitos, como é bom de ver. Em Dezembro, lá no alto da montanha, repito, o frio é de morrer…

A aldeia fascinou-me. Pedregosa, mergulhada em neve, gelo e nevoeiro. Era um ambiente em tons de cinzento. Só tinha mulheres, baixinhas, sempre vestidas de negro, saíam à rua com um manto que lhes envolvia a cabeça e protegia o corpo do frio. Não havia mulher que não trouxesse um cão à ilharga. O cão de Castro Laboreiro é um bicho grande, escuro, de olhos amarelos. Mete medo. Talvez por isso as mulheres não dispensavam a companhia do seu, naqueles dias em que a aldeia foi invadida por um grupo de estranhos, que filmavam e fotografavam sem sentido aparente.
Pois, o que me levou até lá foram, precisamente, aqueles cães. Fiz uma reportagem sobre cães de raça portuguesa e o cão de Castro Laboreiro é um dos mais emblemáticos. É uma raça muito antiga, morfologicamente próxima do lobo. Os olhos amarelos e os dedos das patas virados para a frente não enganam… contudo, revela-se um animal meigo, pelo menos para os donos. As gentes de Castro Laboreiro usam o cão para guardar o gado. No Inverno, o cão encarrega-se disso sem necessidade de companhia humana. O rebanho de cabras fica-lhe entregue. Penso que será o único cão de guarda que faz este trabalho assim, sem ajuda do homem.


Na aldeia, durante a semana, só havia mulheres. Os homens trabalhavam longe e, quanto muito, iam a casa ao fim-de-semana. Mas a maioria nem isso. Muitos andavam pela França. O único homem que ficava era o padre Aníbal. Este padre tinha um forte sentido de protecção em relação à sua aldeia e à paróquia. Era um amante da arqueologia local. Não se cansou de nos levar a ver as pontes romanas, o castelo do século XII, os dólmenes, as pinturas rupestres. De facto, Castro Laboreiro é um sítio fascinante. Mas defendia, acima de tudo, a arqueologia viva que é o cão de Castro Laboreiro. Cheguei a ver o padre a apedrejar cães vadios, abandonados pelos caçadores, que se refugiavam na aldeia durante o Inverno à procura de calor e comida. O problema desses cães é que montavam as cadelas de Castro Laboreiro e, assim, abastardavam a raça. Por esse pecado, eram apedrejados impiedosamente…

quinta-feira, janeiro 19, 2006

RTP 2

A Alta-Autoridade para a Comunicação Social deu parecer favorável à nomeação de Jorge Wemans para o cargo de director do canal 2.
Só tenho dúvidas em relação a uma pequena questão. Gostava de perceber a razão que levou a AACS a ter o cuidado de expressar o desejo, no mesmo comunicado em que anuncia a concordância em relação à nomeação de Wemans, de que a RTP cumpra "rigorosamente" as normas legais no que diz respeito à destituição de directores que tenham a seu cargo áreas de programação e informação.Depois de tomar posse, Wemans vai, então, começar a “tirar coelhos da cartola”… Estou ansioso para ver.

Bissau, 1998 - a mulher abandonada

Tenho sentimentos contraditórios relativamente à história que vou contar. Vacilo entre o pudor e a vaidade mas, como já perceberam, vou contar…
Por razões óbvias, vou alterar o nome da principal protagonista. Chamo-lhe Nininha
Tinha vinte e poucos, talvez até menos, e uma barriga avantajada de 7 meses de gravidez. Tinha sido abandonada por todos. Primeiro, pelo marido português que fugiu da guerra, logo aos primeiros tiros, evacuado no “Ponta de Sagres”, um navio cargueiro que, debaixo de fogo, tirou alguns milhares de pessoas de Bissau. Depois, foi abandonada pelos vizinhos que não quiseram arriscar a fuga com o contrapeso de uma grávida que já não podia correr. Acabou por ficar quase só, na cidade deserta. No bairro onde morava, Chão de Papel, havia meia dúzia de casas habitadas. Alguns homens tinham ficado, para evitar pilhagens. Mas eram poucos.
Nininha descobriu-nos e passou a ser visita assídua. Comia da nossa comida, pagava com risos. De noite, ia para casa.
Ao fim de dois meses, abandonámos Bissau, rendidos por outra equipa de reportagem. Nunca mais soube dela. Ainda durante a guerra, voltei a Bissau mais três vezes, mas nunca mais a vi, ninguém soube dar notícias dela. Havia cada vez menos gente na cidade.
No final da guerra, a Marta Jorge (jornalista da RTP, sedeada em Bissau) contou-me o resto da história…
Andava ela em reportagem, retratando a difícil situação dos habitantes de Bissau que tinham ficado sem morada, porque as suas casas tinham sido destruídas, quando encontrou uma negra jovem que vivia na rua com um filho bebé. O miúdo era muito claro, quase branco. A mulher contou que tinha ficado sem casa, queimada por um obus que lhe rebentou com o telhado. A repórter perguntou-lhe, depois, pelo pai da criança. Respondeu que era um português que tinha fugido. A repórter perguntou, então, como se chamava o bebé. Ela respondeu… "Carlos Narciso".
A Marta teve um arrepio. Passou-lhe pela cabeça que eu seria o pai do miúdo… mas, logo de seguida, a mulher disse-lhe que, quando o bebé tinha nascido, lhe tinha dado o nome da única pessoa que a tinha ajudado durante aquele período.
Gosto desta história, até porque não termina aqui.
Mais tarde, Nininha conheceu um médico francês, voluntário dos Médecins Sans Frontiéres. Apaixonaram-se. Nininha vive, hoje, em Bordéus, com o marido e o filho.
Espero que seja feliz.

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Estou muito zangado

Sabia que isto ia acontecer, um dia. Mas preferia que tivesse sido mais tarde, quando ela fosse mais velha e já tivesse adquirido outra capacidade de encaixe e de entendimento. A minha filha tem 6 anos. É uma menina linda. Esta tarde, quando saía da escola, pela mão da mãe, disse adeus a uma colega. A outra miúda respondeu-lhe: “estás sempre a dizer-me olá. Ainda por cima não gosto de pretos!”

Guerra do Golfo, o voo dos escarros

Durante a I Guerra do Golfo, a RTP enviou repórteres para todo o lado. Albarran foi para o Koweit e Iraque onde se distinguiu de modo a lhe atribuírem a alcunha de “aldraban”, Barata Feyo esteve em Israel e eu fui para o Norte de África, território considerado como a “terceira frente de batalha”.
Durante dois meses andei entre Tunis e Rabat, a filmar manifestações anti-americanas e a entrevistar líderes regionais. Confesso que foi um trabalho chato.

Houve, no entanto, um momento alto nessa missão. Foi em Tunis, capital da Tunísia.. Vários partidos políticos e grupos religiosos tinham organizado uma grande manifestação de apoio a Saddam Hussein. Juntaram muitos milhares de pessoas. Era uma multidão só de homens, vociferantes, exibindo mísseis de cartão pintado e cartazes com insultos ao Ocidente. Posicionámo-nos num local estratégico para filmar o desfile. Passados uns minutos, levei com a primeira escarradela. Depois, uma outra. Aqueles tipos estavam a cuspir para cima de nós! Vingavam as afrontas da maneira que podiam… Foram duas ou três horas difíceis de aguentar. Um polícia aceitou proteger-nos, mas não impedia o voo dos escarros. Depois daquilo tudo, fomos editar a reportagem para a televisão local. Gravei texto, montei as imagens, estava tudo ok. À hora do envio por satélite, não fomos autorizados a emitir a reportagem para Lisboa. É que tínhamos filmado a manifestação sem termos autorização para tal. Deus é grande!...

terça-feira, janeiro 17, 2006

Segregação Racial

Ontem foi “Dia de Martin Luther King”, efeméride que só se comemora nos EUA, segundo creio. A comemoração é pretexto para algumas encenações políticas, com pouco significado real.
Bush encontrou-se com o Reverendo Jesse Jackson, um político negro que se apoia na igreja que dirige para fazer ouvir a sua voz e alcançar os interesses que defende. As cerimónias decorreram em Nova Iorque, os discursos foram politicamente correctos, mas a realidade está muito longe de ser satisfatória quanto à concretização do “sonho” de que Martin Luther King falava.

Um relatório da Universidade de Harvard revelou que a segregação racial aumentou, nos EUA, desde a década de 90 até hoje. Esse relatório, tornado público ao mesmo tempo que se realizavam as comemorações, diz que o racismo nos EUA, em vários aspectos, regressou aos níveis de 1968, ano em que Martin Luther King foi assassinado. "The national segregation levels are back at levels of the late 1960s," disse o Professor Gary Orfield, co-autor do relatório. "We have lost almost all the progress that came from desegregating our urban communities", acrescentou o académico.
Este estudo revela que a segregação já não é, apenas, entre brancos e negros, mas que atinge outras minorias étnicas, como os latinos ou os orientais.

Em 1996, o Director-Geral da SIC, Emídio Rangel, foi convidado pelo governo americano para participar num seminário sobre segurança e direitos humanos nos EUA. Rangel tinha mais que fazer e deu-me a viagem. Na altura, apresentava e coordenava o “Casos de Polícia”, pelo que, digamos assim, seria o jornalista mais especializado na matéria da redacção da SIC.
O seminário decorreu em várias cidades: Washington, Atlanta e Porto Rico. Nos vários locais, tínhamos oportunidade de visitar um conjunto enorme de instituições à escolha. Escolhi tribunais, cadeias e escolas. E vi, com espanto, escolas só de negros, onde se ensinava às crianças a “história negra dos EUA”, onde nos corredores só se exibiam posters e fotos dos “heróis negros”, entre os quais, claro, Martin Luther King. As crianças negras e brancas dos EUA não têm o mesmo curriculum escolar, aprendem realidades diferentes. Acho isso muito estranho. Nas cadeias, vi populações prisionais onde 70% eram negros, apesar dos negros não serem mais de 25% da população. Nos tribunais de polícia, onde os casos são sumariamente julgados, as filas de arguidos eram quase só de negros…

Mauritânia, 1985 - para além da reportagem (1)

A Mauritânia é, hoje, governada pelo coronel Ely Uld Mohammed Vall que tomou o poder, há pouco tempo, através de um golpe de estado que derrubou do cadeirão Maaouyia Uld Taya.
Quando por lá andei, Taya tinha acabado de derrubar o antecessor, de modo que, desde 1984, pouco mudou no “país dos homens azuis”.
A história que vou aqui contar nunca foi “oficialmente” conhecida na RTP. Na época, a inexistência de comunicações telefónicas via satélite levava a que, por vezes, estivéssemos semanas incomunicáveis. Em Lisboa, ninguém estranhava, por isso, que uma equipa de reportagem não desse sinais de vida durante muitos dias. De modo que deu tempo para nos metermos na “enrascada” e para nos “desenrascarmos” sem necessidade de pedir ajuda “ao papá e à mamã”. Cheguei à Mauritânia por mero acaso. Foi um acto de pura inconsciência, digamos. Eu e um grupo de “gloriosos malucos” constituído por António Hipólito (camera-man), José Morujo (assistente de camera) e o António Gaspar (operador de som), tínhamos saído de Lisboa a bordo de um barco da pesca longínqua. Íamos fazer um documentário sobre essa duríssima faina da pesca em alto mar. O documentário intitulou-se “O Cabo dos Trabalhos” e foi para o ar integrado na série “Linhas de Pesca”, na RTP-1.
Era uma viagem demasiado longa, quase três meses no mar. A zona de pesca era ao largo da Mauritânia. Filmámos a bordo durante umas semanas até que cheguei à conclusão de que o trabalho estava feito. E tínhamos ainda, pela frente, mais de um mês de mar…
A impaciência deu-me para ir “pedir boleia”, através do rádio do barco… às tantas, entrou um português na conversa, capitão de um outro navio de pesca, que trabalhava para uma empresa mauritana. Ofereceu-se para nos levar para terra, já que navegava por perto e estava já a caminho de Nouadhibou, o seu porto de abrigo. Aceitámos com entusiasmo. Mas esquecemo-nos que não tínhamos visto para entrar no país, esquecemo-nos que Nouadhibou estava perto da fronteira com o Sahara Espanhol, esquecemo-nos que havia uma guerra no Sahara Espanhol em que a Mauritânia participava e esquecemo-nos que tinha havido um golpe de estado no país, recentemente.
O outro navio veio ter com o nosso, mudámo-nos de armas e bagagens para o novo barco, combinámos com o nosso comandante que voltaríamos a embarcar quando ele tivesse de ir a Nouadhibou declarar a tonelagem do pescado capturado. E lá fomos de “boleia”. Chegámos 24 horas depois e, assim que pusemos pé em terra, fomos presos.

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