Caminhava à nossa frente, com um pau na mão. O chão era de areia, ensopada pela chuva. O mato era denso, arbustos altos, poucas árvores. Não havia trilho. A recomendação era para pisar nas pegadas do homem da frente. Não tirava os olhos do chão, não fosse falhar a marca da pegada. Mas a voz do homem que seguia à frente, estava sempre nos meus ouvidos. “Ali tem mina”, “ali tem mina” dizia ele com frequência, desviando-se meio metro para a direita ou para a esquerda, para fintar a “semente do diabo".
Chegámos ao destino, o local onde estava mais um dos tanques russos que a UNITA tinha utilizado na última grande ofensiva sobre a cidade do Cuito. Estávamos em Janeiro de 1999 e a cidade acabava de se livrar de um cerco de 43 dias. O último, da longa guerra de quase 30 anos. No primeiro avião que lá aterrou, ido de Luanda, chegámos nós, eu e o Renato Freitas. Naquele dia, os combates estavam já a 50 quilómetros de distância, a UNITA batia em retirada, depois de ter tido o Cuito à mercê do tiro daqueles tanques, traficados à conta dos diamantes de sangue. Quem salvou a cidade foram as minas anti-carro colocadas por aquele tipo que nos guiava através do labirinto de morte “semeado” no planalto sobranceiro à cidade. O último tanque quebrou-se a apenas seis quilómetros de distância do Cuito. Os tripulantes eram brancos, ucranianos ou russos, não se sabe. Os que puderam fugir, eclipsaram-se, os outros morreram ali mesmo. Mas não tinham documentos de identificação, não se podia dizer quem eram. Estávamos, portanto, ali, a admirar o tanque de lagartas quebradas… para tirar uma foto melhor, escolhi um ponto ligeiramente mais alto, uma pequenina elevação de terreno, encimada por um arbusto seco… estava lá em cima, quando a voz se fez ouvir de novo: “aí tem mina”… olhei para o tipo e percebi que aquilo era comigo. Olhei para o chão e senti que estava onde não devia… antes de ter tempo de começar a tremer, a voz acrescentou “tem mina anti-carro”… os meus 85 kg não eram suficientes para a detonar…
Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.
Hakuna mkate kwa freaks.
terça-feira, janeiro 31, 2006
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Arquivo do blogue
-
▼
2006
(386)
-
▼
janeiro
(56)
- As caricaturas da ignorância
- Angola, 1999 - campo de minas
- Carta de Manila, 5ª parte (e última...)
- Mauritânia, 1985 - para além da reportagem (3)
- Carta de Manila, 4ª parte
- A paragem do 59
- Angola, um sítio em reconstrução
- Grafittis
- Nanyuki, o bichano na soleira da porta
- Indiferença criminosa
- Carta de Manila, 3ª parte
- Hamas não é sinónimo de paz
- O reptilário (1)
- Mauritânia, 1985 - para além da reportagem (2)
- Carta de Manila, 2ª parte
- Carta de Manila, 1ªparte
- Sudão, os Nuba (3)
- Somália, 1992 - uma garrafa de água
- Parasitas
- Mário Soares, in the end of the day...
- Somália, 1992 - a encenação continua (2ºtexto)
- URSS 1985, um frio dos tomates
- Kosovo, Rugova não deixou herdeiro
- Angola, 1998 - O Palmeirinha
- Guiné Bissau, memórias em ruína
- In dubio, pro reo
- Castro Laboreiro, 1984 - oração aos cães
- RTP 2
- Bissau, 1998 - a mulher abandonada
- Estou muito zangado
- Guerra do Golfo, o voo dos escarros
- Segregação Racial
- Mauritânia, 1985 - para além da reportagem (1)
- Congo, 2000 - os trabalhos de Alfredo Neres (1)
- Argentina, atrás de Menem (1)
- Paraguay 89, sem dinheiro não há palhaços
- Maria Grazia
- Somália 92, fome de cão
- A Gorjeta
- O Caçador de Marajás
- Somália 92, a primeira noite
- Sudão, os Nuba (2)
- Pouca-terra-pouca-terra
- Hanan Ashrawi
- Jornalismo encenado - Somália 92 - 1º texto
- Além-Mar
- Não Há Milagres na Terra Santa
- Excelentíssimo
- Uma "renda" kosovar
- Um whisky que ficou por beber
- Sudão, os Nuba (1)
- To Be Or Not To Be
- A Escola
- Campanha Eleitoral
- Shalom
- Votar à Esquerda
-
▼
janeiro
(56)
Acerca de mim
- CN
- Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média
3 comentários:
Com o perdão da expressão, «d'asse»!
Blogda-se que até me arrepiei. Também por lá andei e todo o texto me soa familiar.
http://desgovernos.blogs.sapo.pt/
A mim, quando me disseram "tem mina" olhei para o céu, comecei a ver tudo em câmara lenta e deixei de ter audição. Fiz os dois metros mais longos da minha vida. Foi em Osijek, na Croácia.
Juanita Caminante
Enviar um comentário