Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.











quinta-feira, junho 22, 2006

Congo, ano 2000. A vida em Bondo

Os missionários dispensaram-nos uma das suas casas, num dos bairros periféricos de Bondo. Não era uma mansão, como se vê pela foto, mas tinha o conforto mínimo: cama com mosquiteiro e um balde furado para servir de duche. Quanto à água, era preciso ir buscá-la a um poço ali perto. Foram umas semanas divertidas. Quando não estávamos a filmar, ficávamos por casa. A miudagem do bairro depressa dava pela nossa presença e o descanso virava algazarra. Os miúdos nunca se cansavam de brincar connosco. Às vezes pediam coisas, mas nunca insistiam muito. E o que eles mais pediam era precisamente aquilo que mais falta me fazia: papel de escrever e lápis… A porta não tinha fechadura, mas nunca desapareceu nada.As refeições eram na missão católica, com todos os outros padres. Em Bondo há, também, uma casa de madres missionárias, todas africanas curiosamente, mas homens e mulheres não se misturam, conforme manda a tradição. Excepto em ocasiões especiais… como foi o caso de uma reunião que se realizou em Bondo, por aqueles dias, com dezenas de convidados vindos de vários lugares do norte do Congo, onde eles discutiram os problemas das comunidades a que pertenciam e delinearam tácticas de actuação. Quando havia muitos convidados, as freiras viravam donas-de-casa e dedicavam-se a cozinhar… Nunca passamos fome, mas comemos mal muitas vezes. A comida era assegurada por um dos acólitos, um branco italiano que vivia ali em regime de voluntariado e que se dedicava a caçar e a organizar a pesca, de modo a garantir o sustento de um numeroso grupo de padres e freiras. Às vezes, o homem não caçava nada. Macaco era quase garantido… e, um dia, até uma águia foi parar à panela para uma bela canja… a pesca também dependia da sorte da faina e, naqueles dias, em plena época seca, o rio corria com pouca água e o peixe escasseava. A faina era realizada por uma família de pescadores locais, a quem os padres forneciam os apetrechos a troco de uma percentagem do pescado. Só que, às vezes, o peixe era tão pouco que os pescadores ficavam com tudo e ainda passavam mal. A penúria alimentar da população era evidente na escassez de alimentos postos à venda no mercado. Dezenas de bancas vazias, algumas com uns peixes do rio, volta e meia aparecia alguém com uma gazela morta a tiro ou um macaco caçado com arco e flecha, umas senhoras vendiam vegetais e era tudo para uma população de milhares de pessoas. Uma pobreza danada numa terra cheia de ouro e diamantes.

4 comentários:

BRUNA disse...

A escassez da fome nem sempre faz paralelo com a abundãncia dos diamantes. Apenas a faz quando os senhores do diamante procuraram os menos senhores da fome para captarem o tesouro de terras férteis para alguns.

escrevi disse...

Continuo a ler com muito interesse as coisas que escreves, mas sabe sempre a pouco...

Patrícia Nogueira disse...

Obrigada por partilhar esta quantidade (e qualidade) de informação.

Anónimo disse...

Parabéns por esta partilha.
Por momentos revivi aspectos dos 10 anos passados no Chade, em Moissalá. Maravilha das maravilhas. Não havia quase nada, mas no fundo havia tudo,... Fome? talvez não, mas apetite, muito!
mas sobretudo, todos estes sentimentos expressos no post, vividos na primeira pessoa.
Continua. linkei-te no nosso blog.
Um abraço
Leonel

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Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média

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