Quando trabalhamos em rádio, aprendemos a dar real importância ao som. Em televisão, o som também é importantíssimo, claro, mas a atenção está centrada no “boneco” que mexe, não no som, até porque em muitas situações as imagens nem precisam de som para ter grande impacto. Lembro-me de uma reportagem que fiz (para a SIC) em Bissau, já no fim da guerra civil, em 1999, numa escola onde tinham caído uns obuses e morrido dezenas de pessoas que se tinham refugiado ali, pensando que estariam a salvo. Quando lá cheguei, dois dias depois, já não havia cadáveres, mas havia as fotos tiradas pelo padre João e que provavam a mortandade inútil e criminosa de dezenas de civis, homens, mulheres e crianças. Filmei as fotos e, na montagem da reportagem, não pus qualquer som sobre essas imagens. Teve um impacto tremendo, soube depois, era um silêncio difícil de suportar, disseram-me.
Depois, na TSF, onde trabalhei durante 2004, aprendi a valorizar o som ao pormenor. A rádio exige sons limpos, audíveis, palavras bem soletradas. A rádio pede-nos textos descritivos, que substituam a imagem que não existe, mas que se forma na cabeça de quem ouve. A rádio pede-nos sons luminosos, como o crepitar das chamas nos fogos da Arrábida, o chape-chape do Tejo contra o costado dos botes da pesca artesanal, o tremor na voz de quem vai ficar sem a barraca no Bairro Estrela d´Africa, a exaltação contida de quem vai ficar sem o emprego na Docapesca, o tic-tic-tic da agulha eléctrica do tatuador no Vale das Almas (memórias soltas dos trabalhos que fiz na TSF). O pior que pode haver em rádio é ruído na comunicação. É por isso que sempre detestei aqueles momentos dedicados à bolsa, em que alguém despeja uma catadupa de palavras estranhas e pouco perceptíveis sobre o sobe e desce, as percentagens, os ganhos e perdas, das empresas e dos índices de não-sei-de-quê. Aquilo deve ser bem pago pelos patrocinadores, mas, na minha opinião, não faz sentido em rádios generalistas, julgo que só afugenta ouvintes.
O som é, portanto, da maior importância para a percepção que temos da vida. Como já repararam, há sons que nunca esqueci, como o do serrote na tíbia do senhor Nicolau. Estou-me a lembrar, também, por exemplo, de um som estranhíssimo que, julgo, a maioria das pessoas nunca ouviu. O som do caranguejo. O caranguejo emite sons, baixinho mas emite. Há uns anos, há muitos anos, de facto, estava com o Paulo Dentinho e o António Hipólito na Ria Formosa, filmávamos mais um episódio da série “Linhas de Pesca” para a RTP, dentro de um bote de pesca artesanal. O pescador dedicava-se à apanha de caranguejos. Uns bichos pequeninos, que ele devia vender muito barato. Tinha centenas deles já, dentro de uma rede enorme. Num momento de silêncio entre nós, apercebi-me de um som que vinha do saco de rede. Uma espécie de ra-ra-ra-re-re-re-ra-ra-ra baixo, quase inaudível. Mas estava lá, o som. Eram as centenas de caranguejos que gritavam, aflitos, como se estivessem a adivinhar o que lhes ia acontecer.
Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.
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domingo, janeiro 28, 2007
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Acerca de mim
- CN
- Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média
5 comentários:
You are amazing!
coitadinhos dos caranguejinhos...
Simplesmente bonito...não o grito dos caranguejos...mas sua sensibilidade para os SONS que descreveu.
Continue. Precisamos de si.
Carlos Duarte
Ao longo do texto fui seguindo o descritivo do pormenor sonoro, que também aprecio. Mas o comentário final foi igual ao da Inominável: coitados dos caranguejinhos!
Gostei ...
Abraço
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