Na década de 80, Luanda era uma cidade difícil. Violenta, suja, já bastante degradada. Não havia restaurantes, nem bares, nem cafés. A Ilha era zona militar restrita. Comprava-se tabaco nas esquinas, em volumes de 10 maços. Para comprar batatas, íamos ao Samba onde as senhoras vendiam, na berma da estrada, montinhos de 5 batatas ou 3 tomates pequeninos. Peixe havia com fartura. Pescava-se ali mesmo, na baía. Mas carne e ovos era preciso apanhar um avião e ir ao Lubango. Muitos faziam essa viagem, para abastecerem a dispensa ou para ganhar dinheiro com a revenda dos produtos em Luanda. Mas havia fome. Na baixa da cidade, na Mutamba ou em Alvalade, o lixo não era recolhido mas ficava abandonado pouco tempo. As ratazanas e os indigentes comiam tudo num instante. Havia alguns hotéis, mas o risco de apanhar pulgas e percevejos era considerável. Daquela vez, alugámos uma casa no Bairro Azul. A casa estava vazia e quem tomava conta dela era o senhor Baganha, um tuga já velhote mas cheio de energia e de expediente. O senhor Baganha ganhava a vida com um camião. Ia e vinha, de Luanda até Viana, transportava gente e tudo o mais que houvesse. Fazia o percurso várias vezes ao dia e, à noite, gastava duas horas a contar as notas. Parecia muito, mas não era. O dinheiro não valia nada. Para comprar uma cerveja, tínhamos de levar um carrinho de mão cheio de notas. Era uma vida arriscada, não só porque ele era branco e, por isso, dava nas vistas, mas porque Viana era fronteira com o território dominado pela UNITA. Estar em Luanda, naqueles tempos, era como estar numa ilha. Só se saía dali voando.
Um dia uma vizinha adoeceu gravemente e precisava de ser evacuada para Lisboa. Só aguentaria a viagem se levasse uma transfusão de sangue imediatamente antes de embarcar. O Hospital Maria Pia não tinha sangue. Os vizinhos mobilizaram-se e fomos dar sangue à senhora. Fui com muito medo. Não de dar sangue, mas da agulha com que me iam espetar… seria descartável? Na dúvida, levei uma que tinha na maleta dos primeiros socorros. No final, era demasiado grossa e não teria servido. Mas, a agulha do hospital era descartável. A médica era cubana e tratou-me bem. No final, até me ofereceram pão com manteiga e um copo de leite, que não aceitei. Só queria sair dali. Não aguentava mais com o cheiro. Era um cheiro penetrante, gorduroso, que vinha dos canos e das paredes castanhas e amareladas de sujidade. Havia 10 anos que ninguém lavava aquelas paredes.
Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.
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sábado, abril 29, 2006
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Acerca de mim
- CN
- Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média
2 comentários:
Quando acabo de ler as tuas reportagens/experiências, apetece-me dizer-te: Conta mais...
Eu morei na rua d.Francisco António Pinto, 60, no Bairro Alvalade. O meu único irmão nasceu lá, 40 dias antes do 25 de Abril.
Não havia médicas cubanas simpáticas, mas as paredes do hospital estavam limpas.
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