Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.











sexta-feira, abril 21, 2006

Israel, 1989. Na primeira Intifada. No hospital

E de que me lembro eu do hospital de Nablus? Lembro-me de enfermarias pintadas de amarelo e branco, cheias de gente entubada, engessada, dorida. Lembro-me de ver um homem gordo, que destaparam de propósito para que pudéssemos ver bem o corpo todo pisado de porrada. Não havia um centímetro de pele que não estivesse enegrecida do sangue pisado. Lembro-me de ver miúdos com o corpo retalhado, paraplégicos e que ainda faziam o V com os dedos… V de quê? V de vida fodida? Que vida era aquela? E as famílias à volta dos feridos, pais, mães, avós, resignados perante tanta fatalidade. Lembro-me de registar a lengalenga dos médicos sobre a falta de medicamentos e de instrumentos cirúrgicos, a falta de energia, a falta de água, a falta de tudo. Lembro-me de ter notado que não havia soldados feridos, que todos os feridos eram civis, que todos os civis eram combatentes, que as convenções internacionais sobre a matéria estão desactualizadas e que ninguém as respeita. Lembro-me de ficar muito cansado daquilo tudo e de não perceber como conseguiam eles continuar naquilo, naquele dia-a-dia demente e sem fim à vista. E não teve, ainda, um final. Aquela luta ainda hoje continua. Não sei como é possível que uns ainda não se tenham cansado de bater e outros não tenham ainda desistido de apanhar. Lembro-me, ainda, de termos comido com os médicos, na cozinha do hospital. Comemos todos à volta de uma enorme frigideira com qualquer coisa frita com tomate. Não sei o quê, mas comemos. A reportagem em Nablus estava feita, só faltava sair dali…

8 comentários:

125_azul disse...

Na verdade, só queríamos que a guerra das pedras e todas as outras, já agora, se é para pedir,que sejamos generosos..., acabassem de vez. Porque morte é coisa para gente grande e os miudos, de vidas fodidas e mortes mais...so, so sad!
Grata pelo mergulho no 125azul.

O Micróbio II disse...

Mais um episódio brutal baseado sempre no mesmo pressuposto... o ódio!

escrevi disse...

Leio e fico revoltada.
Não é que não saiba, mas as palavras e as imagens lembram de uma forma real que o mundo é realmente cruel.
Reforço por isso as minhas palavras de ontem (desculpa a insistência).
Deve ser, para ti, terrível a recordação de tantas atrocidades, mas por outro lado, tu tiveste o previlégio de ver e ouvir, para poderes contar.
Como dizia o cantor:
"Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar...".
Tu viste, nós ouvimos e lemos, como é que ainda hà tanta gente a ignorar?

isabel mendes ferreira disse...

os hospitais da zona. daquela. são verdadeiras lições de sobrevivência.de vida. de morte. de resistência....!


e tudo continua igual....e irá continuar...infelizmente.

excelente o modo e o momento de mostrar.

Madalena disse...

Não entendo também.
Registo dorido este! maravilhoso mas dorido!

Diogo disse...

Excelente artigo!

«Não sei como é possível que uns ainda não se tenham cansado de bater e outros não tenham ainda desistido de apanhar»

Mas como e que é possível desistir de apanhar? Se os outros não param de bater?

CN disse...

A pergunta é boa SOFOCLETO... realmente parece uma impossibilidade. Mas onde eu queria chegar era à evidência de que nenhum dos lados desiste da luta, embora um dos lados apanhe mais do que o outro.
Faltou-me arte.
Um abraço.

LM disse...

...Como se isso fosse possível, Carlos!
Fique bem.

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Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média

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