Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.











sexta-feira, abril 07, 2006

A semente do diabo

Quinta-feira foi Dia Internacional de Sensibilização para o Perigo das Minas e a Assistência à Acção Antiminas… uma efeméride com um nome demasiado extenso. A não ser que o tamanho do nome esteja relacionado com a dimensão do problema… lendo umas coisas, fiquei a saber que se estima em 110 milhões o número de minas por explodir em todo o Mundo… ontem, realizaram-se vários eventos para protestar contra a utilização cobarde desta arma, que mata mais civis que militares, mais crianças que adultos, mais mulheres que homens… porque são os civis que ignoram onde as minas foram colocadas, porque enquanto o rebentamento de uma mina decepa uma perna a um adulto, corta uma criança ao meio, porque nos países do Terceiro Mundo, os que estão mais minados, são as mulheres que trabalham nos campos e acabam por pisá-las…

ontem, em Trafalgar Square, Londres

Segundo uma nota de imprensa divulgada ontem, pelas Nações Unidas, 20 mil pessoas morrem, anualmente, porque pisaram onde não deviam. Uma merda…mas os lamentos sobre o fabrico e uso de minas anti-pessoal fazem-me lembrar as políticas cínicas da luta anti-tabagista ou anti-alcóol. É tudo muito mau, continuam a morrer pessoas por causa desses negócios, mas eles continuam, porque dão empregos, porque pagam impostos, porque os lobbies permanecem fortes e actuantes. Ao longo dos anos, vi muitos mutilados por causa das minas. Principalmente em Angola e Moçambique, mas também no Sudão, na Bósnia, no Congo.
Em 1997 fiz uma grande reportagem sobre o tema, em Angola. Sempre foi um assunto que me interessou e, se têm lido os textos que deixo por aqui, sabem que tive alguns “encontros imediatos” com a “semente do diabo”.
Aqui fica o relato de mais um:
Quando, em 1997, Kofi Annan visitou Angola, foi ao Cuito. Foi recebido por uma multidão de amputados, soldados e civis, homens, mulheres e crianças, vitimados pelas minas terrestres. Nesse dia, choveu a cântaros. Bátegas de água, pesadas e densas como são as chuvadas tropicais. Sempre que começava a chover, o povo refugiava-se nos escombros dos edifícios circundantes da praça central do Cuito, onde estava o palanque onde Kofi Annan haveria de subir para se mostrar ao povo e discursar as habituais palavras sensatas e inúteis.
O grupo de jornalistas que acompanhava a visita do Secretário-Geral da ONU viajava num avião que antecedia o avião da comitiva oficial. Chegámos ao Cuito duas horas antes… e, por isso, apanhámos com muita chuva…
Entre o grupo estava o enviado-especial do jornal Público, Pedro Rosa Mendes. Quando caiu a primeira carga de água, o povo fugiu para os alpendres das casas arruinadas. Em pouco tempo, deixou de haver espaço livre para mais alguém se abrigar da chuva. Olhei à volta e vi uma casa vazia… e disse ao Pedro para irmos para lá, que ali havia espaço. Atravessámos a praça a correr e entrámos de um salto para dentro da casa. As paredes esburacadas de tiros de obus, o tecto caído, destroços por todo o lado… e começámos a ouvir gritos vindos da rua: “aí tem mina!”, “aí tem mina!”…
Era por isso! Porque aquela casa ainda não tinha sido desminada, ninguém se refugiava nela. Tinha de haver alguma razão, estúpido, pensei para mim próprio. Olhámos para o chão, como se fossemos ver a mina armadilhada ali mesmo à frente… mas vimos as nossas pegadas no pó da tijoleira… e foi por ali mesmo, pisando nas próprias pegadas, que saímos, inteiros, para a chuva que continuava a cair.

4 comentários:

CN disse...

Meu kamba, não tenho a certeza se os angolanos querem os tugas de volta. Ainda hoje, repara, o Jornal de Angola, orgão oficial do estado, não tem uma única notícia sobre a visita do Sócrates.

Diogo disse...

No Wikipédia

A maior indústria de minas antipessoais do mundo se encontra nos Estados Unidos, seu nome é Claymore Inc. Esta indústria fabrica um tipo de mina cuja função é destruir e cauterizar após a explosão, os membros inferiores dos elementos atingidos aleijando-os, mas não matando-os. Este procedimento é feito de forma que o elemento alvo não venha a morrer por hemorragias, e sim permanecer vivo, acordado, e sentindo dores pela maior quantidade de tempo possível, de forma a quebrar o moral da tropa em seu avanço.

LM disse...

Fica bem assinalar estas efemérides!
Sabe que mais,Carlos?
Não seria má ideia rebentarem por cá umas quantas...in the right places, of course!
Noite boa.

Carla disse...

:(
Impressionante...
Deixo votos de um bom fim de semana
Bjx

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Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média

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