Os últimos dias em Mogadíscio foram de grande sobressalto. Tínhamos a sensação de que estávamos a arriscar demasiado. Julgo que esse sentimento foi fortemente influenciado pelo que sucedeu a um companheiro de trabalho holandês, um camera-man da RTL que quebrou psicologicamente. Um dia, resolveu não sair mais para a rua e deixou de conseguir trabalhar. Também nós já fazíamos riscos na parede do quarto…
Aquilo que aconteceu há dias a Martin Adler, tinha acontecido por aqueles dias a um funcionário de uma ONG que, ao recusar um aumento salarial aos seus guarda-costas, foi sumariamente fuzilado à porta de casa. De modo que quando recebemos luz verde para retirar dali, foi um alívio. O drama era sair. A única maneira era apanhar um avião. Ir para a pista e esperar que aparecesse algum avião, civil ou militar, que nos desse uma boleia para qualquer lado do Mundo. Naquela altura, o aeródromo central de Mogadíscio era um local movimentado. A Somália concentrava todas as atenções, políticas e humanitárias, de modo que chegavam a toda a hora aviões carregados com sacas de alimentos e que saíam vazios.
Foi isso que fizemos, com uma particularidade. Não queríamos ir para qualquer lado. Eu queria ir para Mombassa… depois daquele inferno, só queria meter a cabeça debaixo de água no Índico. Demo-nos ao luxo de recusar boleias para Dar-es-Salam, Nairobi, Entebbe. De repente, aterrou um monstro branco com asas enormes. Quando o piloto saiu, perguntei-lhe para onde iria regressar, depois de descarregar os sacos de farinha de milho. O russo tirou uma garrafinha de bolso, abriu-a e inspirou o perfume do whisky. Depois, tomou um trago. Por fim, respondeu-me: Mombassa.
Foi assim que viajamos, eu e o Domingos Mascarenhas, no maior avião do Mundo. O Antonov 225. Com uma tripulação russa que parecia acabadinha de sair de uma história de banda desenhada de Hugo Pratt.
Eram todos estranhos, emporcalhados, arrotavam a whisky e peidavam-se olimpicamente. Mas levaram-nos pelo céu e aterraram suavemente em Mombassa, onde preenchi o meu imaginário com novos sonhos.
Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.
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segunda-feira, julho 03, 2006
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Acerca de mim
- CN
- Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média
4 comentários:
A ti só te faltaria o brinco para seres o Corto Maltese...
O que é que não te aconteceu?
Boa noite!
como narra esta sua estória faz-me lembrar um pouco o filme candidato a Óscar, o Fiel Jardineiro...
a boleia que o diplomata apanha para ir ver onde a sua namorada morreu....e onde é morto, também!!
um abraço e boas aventuras
RPM
Este excelente post, faz-me lembrar um livro do Reverte "Território Comanche".
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