Último passo desta procissão:
O capataz dá três pancadas fortes no alto da estrutura. A pausa durou poucos minutos. À pressa, as costaleras dão as últimas baforadas nos cigarros antes de se colocarem debaixo da parihuela. “Vamos calar a boquinha aí debaixo. Vamos escutar e calar!”, ordena o 2º capataz. Olhando para dentro pergunta: “A traseira está?”. A resposta vem do fundo, “a traseira está.” Nova pancada antes de a estrutura se erguer num salto. “Todas por igual. Ao céu”. O rádio leitor de CDs começa a tocar o andamento da banda que acompanhará a Virgem da Encarnação. Seguindo o andar arrastado das mulheres, Rafael Martin, de 44 anos, desempregado, segura o rádio como se levasse a música ao colo. A t-shirt branca com o rosto da imagem impressa molda-lhe a barriga. Não falta a um ensaio. “À parte destas [coisinhas], venho pela minha Encarnação”, acrescenta. Cumprimenta toda a gente em tom de festa, e não consegue conter as lágrimas de mãos coladas ao rosto quando contempla a imagem da Virgem. A estrutura avança até deparar com mais um carro estacionado. “Parem aí!”, à ordem do capataz mudam de direcção num ângulo de 90 graus. “Pouco a pouco a esquerda à frente, pouco a pouco a direita atrás!”. Ensaiam durante várias horas pelas ruas do bairro. Às vezes começam a meio da tarde, outras à noite com uma luz giratória de sinalização de cargas pesadas em cima do passo. Por tradição, promessa, ou apenas por curiosidade estas mulheres decidiram entrar na confraria do Amor por 12 euros/ano. Trazem os filhos aos ensaios, passam-nos debaixo do manto da imagem e põem-lhes o costal. Por vezes desentendem-se. “Todas por igual, valentes!”, diz o capataz. Há até quem veja a Igreja com maus olhos. “Isso está tudo podre. Há interesses económicos, políticos, e mais...”, desabafa Verónica Relaño, de 23 anos. Na t-shirt negra tem escrito Full Contact , e nas calças justas Kiss Me. “Rezo todas as noites mas não tenho porque confessar-me a um padre. Dá-me vergonha”.
Os candeeiros de rua acendem-se com o cair da noite. Passaram mais de três horas de cigarros fumados à pressa pelas descidas à parihuela, de garrafas de água esvaziadas, de piadas. Mas a garagem ainda está longe. “À saída qualquer uma é costalera!”, diz um ajudante do capataz. “Isso não pesa nada. Isso é uma brincadeira”, anima em seguida. “Já está aí o Domingo de Ramos. Já falta pouco para levarem a Mãe”.
Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.
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sexta-feira, maio 26, 2006
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Acerca de mim
- CN
- Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média
3 comentários:
Ai os bicos de papagaio... a Fé. Sempre a fé, a mover montanhas, buscando anjos e santos. Fim de semana feliz.
Aquele na segunda foto não é o Eurico de Barros?
Fé não raciocinada. Como a entender?
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