Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.











terça-feira, janeiro 10, 2006

Jornalismo encenado - Somália 92 - 1º texto

Cheguei a Mogadíscio em finais de Novembro de 1992. Fiquei lá até ao Natal. Foi um mês completamente louco.
Naquele tempo, a Somália devia ser o sítio mais perigoso do Mundo. Sem governo, a população combatia na mais estranha guerra civil que já vi. Vários clãs matavam-se entre si, numa demência de todos contra todos.

A avioneta alugada em Nairobi aterrou no aeródromo central de Mogadíscio, precisamente no momento em que aquela parcela de chão estava a ser disputada entre duas das facções em conflito. Como não havia comunicação via rádio com alguém em terra, o piloto (e nós) só se apercebeu que havia balas a voar, além do avião, quando já não conseguiu abortar a aterragem. O avião bateu no chão e foi rapidamente conduzido para trás de uma parede, onde sempre havia alguma protecção. Assim que o tiroteio teve uma pausa, o piloto levantou voo e nós ficamos. Eu, um fotógrafo americano e dois tipos alemães da televisão ZDF. A SIC tinha-me enviado sozinho para ali. Eu deveria procurar a equipa da Reuters e trabalhar com eles. Não há nada pior que ir para um sítio destes sem um companheiro.

Arranjar alojamento foi o primeiro tormento. Os tipos da ZDF tinham um contrato com a CNN e iam ficar na casa que a televisão americana tinha comprado. Eles são assim, chegam e compram! Decidi ir com eles, quem sabia se não poderia lá ficar também… Chegamos ao compound da CNN já de noite. O anchor preparava um directo, com cenário montado. Quando digo cenário, não estou a brincar com as palavras. Era mesmo um cenário, onde figuravam duas pick-up Toyota de caixa aberta, equipadas com metralhadoras pesadas, e vários somalis em pose de rambo… e o anchor americano dizia, no seu directo, “estamos na frente de batalha, atrás de mim os guerrilheiros de Aidid…”, blá blá blá blá… bullshit como se diz na China. Armar aos heróis, a grandes repórteres, dentro dos muros protegidos por guardas privados e com figurantes pagos… e eram aqueles tipos a referência mundial do jornalismo televisivo.

4 comentários:

para mim disse...

Olha, vou-te dar uma novidade: não se deve dizer mais "jornalismo de referência", mas a partir de agora sim "jornalismo de reverência"!

Isabela Figueiredo disse...

É o que diz o Marujo: não há guerra sem câmara de televisão. Nem protesto nem facto. Há o espectáculo da guerra; há o facto que a imagem televisiva criará.
Isso vê-se nos directos dos nossos telejornais: os manifestantes começam a gritar, a abanar os cartazes, mal tem início a ligação ao estúdio: terminam o barulho no final da mesma ligação.

Os jornalistas portugueses são, ainda, da velha guarda; românticos dispostos a arriscar a pele em nome da verdade. Ciosos da ética.
A descrição é fabulosa. Mas, se tivesse tombado naquele cenário de balas perdidas? É insuportável que a verdade custe tão caro!
Tenho mesmo de dizer isto.

CN disse...

Isabela, nem todos são assim tão ciosos, como verá se continuar a ter paciência para ir lendo este blog. Um abraço.

Isabela Figueiredo disse...

Sim, posso imaginar.
Terei. Conte!
Um abraço para si, também.

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Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média

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