As voltas da vida, os divórcios, as mudanças de casa, o vento que entra pelas janelas… tudo contribui para irmos perdendo objectos, anotações, fotografias, os ícones da memória. As minhas fotos da Mauritânia ficaram por aí. Essas e muitas outras. Para encontrar uma foto do Dimas, tive de rastrear o homem, chatear a família dele… é que o tipo continua a viver em Nouadhibou. As fotos que consegui não são famosas, mas o que me interessa aqui é prestar-lhe uma homenagem pela coragem e desapego que evidenciou quando nos ajudou, naqueles dias.
Dimas dos Santos não foi só o salvador que nos tirou da cadeia. Foi, também, um amigo. Aos fins-de-semana lá íamos de passeio… ver as maravilhas locais.
O mercado de peixe, as praias, o comboio que vinha das minas de minério do deserto e que era, ainda é, o maior comboio do Mundo, com milhares de vagões puxados por centenas de locomotivas. Diziam os mauritanos que o comboio demorava dois dias a passar… Mas o que mais me impressionou na Mauritânia foi a percepção do relacionamento social entre as diferentes classes e categorias de pessoas.
Os árabes, surpreendentemente brancos e, alguns, até de olhos claros, eram os donos da terra e das pessoas. Donos, no sentido largo da palavra. Vi, diversas vezes, soldados ou polícias negros ajoelharem-se, em plena via pública, e beijarem a ponta das vestes de um árabe. Achei aquilo um hábito estranho, mas depois explicaram-me que a escravatura tinha sido abolida, oficialmente, em 1980… apenas 5 anos antes(!). O que significava que, na prática, tudo continuava na mesma. Mesmo percebida a questão, nunca deixei de me interrogar porque motivo um tipo armado aceitaria ter de beijar a fralda de um outro gajo e submeter-se à sua vontade de modo indiscriminado.
Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.
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terça-feira, fevereiro 21, 2006
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Acerca de mim
- CN
- Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média
4 comentários:
"Toma conta de mim", grita lá por dentro o homem que não se conhece, que não é livre. Hoje queremos que seja o Estado a tomar conta de nós e não percebemos que devíamos ser nós a tomar conta do Estado... Ainda há muitos escravos à solta por aí. Só que julgam que são livres... vivem na mentira.
O pior de tudo é mesmo o vento pelas janelas...
Também gostava de saber como é que um tipo aceitar que outro se ajoelhe para lhe beijar a fralda!
Perplexa acho que é a palavra que melhor descreve o meu estado actual. Então "O" Carlos Narciso, esse senhor que eu cresci a ver nos Casos de Polícia (com a sua voz envolvente e o seu ar cândido e profissional) leu o meu blog. E o pior: identificou-se com o meu último texto, viahjou ans suas memórias e ainda me disse que gostou.... Ai... isto não pode ser verdade....
De uma ex-jornalista, os meus sentidos e emocionados agardecimentos por tão grande honra.
Gostei de descobrir essa comprida composição ferroviária no seu texto!
e que adrenalina eu agora descarreguei!!
Um abraço!
«Mesmo percebida a questão, nunca deixei de me interrogar porque motivo um tipo armado aceitaria ter de beijar a fralda de um outro gajo e submeter-se à sua vontade de modo indiscriminado.»
Quase me atreveria a dizer que no corpo, alguns gestos se apressam (ainda treinados) a acções que lhe foram impostas pela força do hábito (e outras forças, claro).
... Eu disse quase. Estive apenas a pensar escrito.
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