Memórias de muitos anos de reportagens. Reflexões sobre o presente. Saudades das redacções. Histórias.
Hakuna mkate kwa freaks.











quarta-feira, março 15, 2006

Congo, 2001 - A Expedição, a escola

Na escola, que não passava de um telheiro coberto de palha, onde as crianças se sentavam em troncos e escreviam com carvão em pranchas de madeira, havia um quadro de ardósia. E, nesse quadro, estava escrita a palavra mesa. Assim mesmo, mesa. Tal e qual como se escreve e diz em português. E foi o professor Bolossa Kali quem me ensinou que mesa, copo, sapato, santo, peça, farinha, saco… são algumas das palavras portuguesas adoptadas por estes povos do interior de África. Uma herança que o tempo não destruiu, apesar de os portugueses nunca terem feito nada por isso. Aconteceu que muitos povos africanos integraram nos seus dialectos as palavras de objectos e conceitos que não existiam para eles, até à chegada dos portugueses ao coração de África. E acho espantoso que essa herança perdure em locais e com povos nunca colonizados pelos portugueses e, mais do que isso, depois de séculos de colonização inglesa, francesa, belga ou alemã. Nambala é uma pequeníssima aldeia de palhotas escondida na floresta do Makulungo, a uns 150 quilómetros da fronteira com a República Centro Africana. Bolossa Kali é o professor desta escola. Um homem viajado. Quando era novo foi até Kisangani e mesmo a Kinshasa. Aprendeu a ler e a escrever, sabe fazer contas e fala um pouco de francês. Tudo o que sabe ensina agora aos jovens da sua aldeia. E, sem querer, vai ensinando palavras de português que foram integradas no dialecto kizande.
As carências desta escola estão bem à vista, nem vale a pena falar delas. Aqui, aprende-se a contar pelos dedos e a soletrar. Não existe mais nada. A escolaridade termina assim, num bê-á-bá rudimentar. A grande maioria destes alunos nunca viu um livro, nunca leu letra impressa em papel. As crianças permanecem na escola apenas enquanto não crescem o suficiente para se tornarem mais úteis noutra actividade. Os rapazes irão aprender a caçar e a explorar o que a floresta tem para dar. As raparigas são casadas com homens mais velhos logo após a puberdade e passarão a vida a parir filhos e a cumprir os pesados rituais domésticos de uma dona-de-casa. O pouco tempo que estas crianças passam na escola é, por isso, o tempo mais feliz da vida deles, o tempo que recordarão com mais saudade…

4 comentários:

Isabela Figueiredo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Isabela Figueiredo disse...

Se eu fosse professora, gostaria de ter uma sala de aula debaixo de uma árvore, no verão (se fosse inverno, dava jeito um tapume). Improvisava uma ardósia, onde se pudesse escrever com um bocado de cal dura. Não precisava de cadeiras nem de mesas. O chão servia. Os alunos não precisavam de livros, apenas de cadernos e lápis. Os meus livros serviriam para todos. Leriam pelo meu livro ou ouvir-me-iam ler. Nestas condições, se fosse professora, e ouvida e respeitada como ser humano mais velho, que sabe outras coisas, conseguia ensinar-lhes tudo o que os livros ensinam e o experiência humana bebe da vida.
Se fosse professora, precisava de muito pouco para ter a melhor escola do mundo. Se fosse professora, é possível que conseguisse dar boas aulas em condicões exíguas. Porque o bom ensino nasce da vontade de aprender e de se ensinar. O bom ensino nasce do respeito que nos votam, que votamos uns aos outros.
E é só isto que tem de mudar.
Se eu fosse professora, podia sê-lo na rua. Há, em África, excelentes escolas debaixos de cajueiros.

Márcia disse...

Que lição maravilhosa esse professor passa aos que com ele aprendem, não só a somar e a ler, tiram proveitos de lições de vida,de cidadania,de bem viver.
Espetacular!
Felizes são os que,mesmo por pouco tempo,podem usufruir de ensinamentos na escola.
boa noite,
beijossssssss

Isabela Figueiredo disse...

Disse que te deixava lá do outro lado um texto sobre escolas, e isso. Deixei.

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Jornalista; Licenciado em Relações Internacionais; Mestrando em Novos Média

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